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La Petite Souris

 


As luzes azuis piscam em ritmo ordenado/Através da janela, a chuva morna cai/Formando uma mistura inebriante de marcantes aromas/Churrasco, vento quente e chão molhado//As luzes azuis suspendem o movimento caótico/Porém, não está suspensa a agitação que coordena a casa/Por entre carregadores de celular, petit fours de aliche e barulhos de televisão;/Perfumes enjoativos se encontram no ar, uma guerra sazonal costumeira//E, de repente, as luzes azuis se apagam/A escuridão, porém, é logo cortada por uma luz única vinda do teto/Batom vermelho, cabelos por trás da orelha, correntinhas no pescoço/O clique abafado das chaves girando na fechadura//A luz amarela do corredor se acende ao suave movimento do sensor/Uma última checada para garantir que o gás está fechado/Sorrisos nervosos, saltos batendo no chão/Álcool em gel na mão depois de acionar o elevador para o sétimo andar do prédio//Pinheiro falso, renas de plástico, "cuidado para não escorregar"/Estacionamento vazio, barulhos de fogos de artifício sendo estourados ao longe/O rádio do carro sintonizando música pop anos 2000, Mariah/Uma parada antes do destino final//Um resumo da Véspera de Natal.

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O meu Calendário do Advento me pediu, então aqui estou: este é o primeiro conto de Natal de 2022 que vocês lerão aqui no blog. Eu desejo de coração que vocês gostem... E, também, que me indiquem novos temas para as outras histórias que aqui se escreverão. Um bom início de dezembro para vocês, querido(a)s amis! :) ------------------------------------------- Era a primeira noite com neve do ano. Pela janela, podia ver o asfalto sendo coberto por uma grossa manta alva, o contraste com o grafite surrado remetia a sabão e roupa suja. Pequenos flocos de neve caíam do céu arroxeado e tudo se esfriava, respirações congelavam, sorrisos de crianças apareciam encantadas com a certeza de que o Natal finalmente havia chegado. Elas teriam sido boas ao longo do ano? Ganhariam doces multicoloridos ou pedaços de carvão nas meias penduradas no alto da lareira? Inspirada por suas alegrias inocentes, não tive como sorrir também. Distraída, vi meu reflexo na janela do restaurante. Mamãe tinha razão: eu ficava muito melhor quando sorria... Apesar das rugas que surgiam, infames, em minhas bochechas; o sorriso trazia uma luz delicada ao meu olhar, sempre tão duro e inconstante. Um desabafo dos meus ansiosos pensamentos, milhares de pensamentos, a toda hora, por cada coisa, em todo lugar. Como agora: você viria? Por que ainda não estava aqui? Se acontecera alguma coisa, por que ainda não havia me ligado? Quando chegaria? Havia desistido de mim? A verdade era que olhava para fora do restaurante a sua procura e não por causa da neve. Besteirol sentimental, esse Natal! Espiava ansiosamente a entrada do restaurante, os ouvidos abertos para todo e qualquer som de sinos que uma abertura de porta anunciasse. Revirava o celular nas mãos, apertando-o levemente. Foi quando o barulho de talheres caindo na mesa ao lado desviou a minha atenção do mundo interior conturbado a sua espera. Olhei para a origem do som: um garotinho de seus seis, sete anos, havia derrubado a colher que usava para tomar uma sopa de queijo. Estava com os pais: o primeiro, repreendia-o com o olhar, preocupado com a perscrutação alheia de suas vidas; o segundo, envergava-se por debaixo da mesa na tentativa de o auxiliar. Discretamente, tentei olhar para baixo para ver se a ajuda era bem-sucedida. De relance, vi o homem piscar marotamente para o filho, fazendo uma careta engraçada e apontando para cima, indicando  a ele para não se abalar tanto com a cara feia que encontraria. Foi a segunda vez que sorri naquela noite, envolvida com a atmosfera familiar dos meus vizinhos de mesa. Mesmo em meio ao caos de sentimentos que me circundavam. Então, eles voltaram a jantar. E eu decidi escanear o ambiente em que me encontrava. Era um restaurante italiano. Um restaurante italiano decorado para as festividades de fim de ano: festões de um verde profundo eram os cachecóis aconchegantes das pilastras de pedra rústica; guirlandas enfeitadas com fitas vermelhas substituíam os quadros de cantores de ópera famosos; pisca-piscas foram colocados estrategicamente para parecerem vagalumes descansando no meio do salão; um frondoso pinheiro majestosamente atraía os olhares daqueles forasteiros que entravam no restaurante e logo davam de cara com ele. Os funcionários usavam aventais e domas com detalhes natalinos: bordados em verde e vermelho, maquiagens com tons de dourado e muito, muito glitter para todos os lados. Em vez das tradicionais músicas italianas, os alto-falantes gritavam versões pop de Jingle Bells. O cheiro de canela e assados poderiam ter sido pulverizados no ar de tão presentes. Mas, o que não estava presente nessa atmosfera inebriantemente encantadora - e enjoativa - era você. Já se passava meia hora do nosso horário combinado. Pergunto-me quanto tempo você me esperaria se estivéssemos em posições invertidas: dez minutos? Duas horas? Estava sendo exigente demais? Estava negligenciando a mim mesma? O garçom bonitinho me olhou aflito. Estaria ele preocupado comigo? Mostrava a sua piedade por uma mulher bem-vestida, que tomava a sua terceira dose de vinho, enquanto tragava com os olhos o estacionamento? Queria o meu número de telefone? Ou queria que eu pedisse algo substancial para que pudesse garantir a sua gorjeta natalina? 20h45. A família na mesa ao lado se levantou para ir embora. O menininho passou a manga do suéter listrado pela boca melecada de mousse de chocolate. Não pude conter um suspiro. Senti a minha garganta queimar, controlando as lágrimas que lhe subiam torrencialmente. Pobre barreira de contenção... Inutilmente, se esforçou. Porém, não conseguiu evitar que as lágrimas irrompessem por meus olhos vazios que já não mantinham o brilho esperançoso de antes. Não queria estragar a maquiagem que reproduzi tão fielmente às inspirações do Pinterest que salvara por tantos dias. Estraguei. A minha mão se pintou de vermelho, preto, dourado... Não queria amassar o vestido que comprara apenas para aquele dia, o decote quadrado, o tule era uma rede de strass diminutos. Amassei, amassei com as minhas mãos nervosas que torciam o tecido em espirais. E, principalmente, não queria pensar mal de você. Pensei; vislumbrei você chorando, encolhido, enquanto eu lhe dizia impropérios vulgares, jurando não te amar, jurando que te abandonaria, jurando que você não estava à altura da mulher que eu era. O garçom bonitinho percebeu minha consternação e discretamente veio até a mim. Perguntou se eu estava bem, se eu queria que ele me emprestasse seu telefone para ligar para alguém. Olhando em seus olhos azuis, recusei. Ele disse que buscaria uma água com açúcar e desapareceu na movimentação marítima de bandejas e pessoas. Derrotada e envergonhada, decidi me afundar na visão da janela; assim, se eu não olhasse para ninguém ao redor, a minha mente sentiria que eu era invisível, transparente. A rua já estava completamente coberta pela neve fofa. Os transeuntes não se arriscavam mais a perambular sem rumo. O poste de luz, imperativo, esparramava uma luz alaranjada por tudo, palco para os efeméridos flocos de neve que dançavam no palco vazio entre o céu e o chão. Foi quando, repentinamente, Deus Ex Machina, você surgiu. Levantei-me tão rapidamente que não vi o garçom se aproximar e derrubei toda a água que me trazia em seu avental verde Grinch. Deixei na mesa o meu celular, a minha bolsa, a meia taça de vinho espanhol, a minha dignidade. Abri a porta com força, tropecei nos degraus, procurei estabilidade na chuva congelada. Do outro lado da calçada, você sorria, segurando algo atrás das costas. O cachecol azul tremulava ao redor do pescoço. Me disse algo, não entendi. Era o seu pedido de desculpas? Segurou o meu rosto suavemente, enrolou a minha franja na ponta dos dedos, tudo o que eu podia sentir era o cheiro amadeirado de seu perfume sazonal. Então, segurou algo em cima da minha cabeça: era um ramo de visco. Olhei para você, intrigada. Você sorriu novamente, curioso, com... Medo? Sim, detectava a minha velha companheira também em seu olhar: a ansiedade abraçava-lhe, sussurrando dúvidas em seus ouvidos sempre tão destemidos, sempre tão companheiros. Quando olhei para o movimento em sua mão direita, notei que ela também tremia levemente enquanto segurava um objeto circular. Em meio à neve, às portas do Natal, você me pediu em casamento. E eu aceitei.
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uma noite fria às 4h40 da manhã. dois jovens caminham pela rua. ela, de fones de ouvido, sorri pela segurança que sente ao crescer junto a ele. ele, vacilante, carrega a ansiedade urgente no peito de um coração que se trancafia contra a vontade. amigos de infância, dezenove anos. ela não sabe o que é amar com furor, verdadeiramente... ele não sabe o que é amar honestamente, sem freio... eles se olham e a neve congela no espaço de uma respiração acelerada. uma balada de amor não correspondido. --------------------- * este pequeno (e singelo) poema foi escrito com base no k-drama "Soundtrack #1", disponível no Starplus.

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O som de cascos derrapando pode ser ouvido a um raio de cem metros. A noite estava escura, como se estivesse à espreita predadora de algo, silenciosa. O chão de cascalhos soltos não lhe dava a estabilidade ideal para um passeio à cavalo mas, mesmo assim, Jorge escolheu sair um pouco de casa a fim de tomar um ar fresco naquela noite abafada de verão. Insetos rondavam-lhe as pernas desnudas, zanzando em volta das orelhas de seu companheiro de anos, amigo de infância, montaria puro-sangue. Na estrada vazia, o interior de São Paulo lhe sussurrava acordes naturais assustadores. Os grilos faziam a festa costumeira por entre as moitas de mato queimado nas pontas, os sapos coaxavam na lagoa a noroeste. Sozinho e calorento, Jorge seguiu pela trilha que não lhe era tão amiga.

A cada passada que seu cavalo dava, triturando as pedrinhas, espantando seres rastejantes que saíam de suas tocas; o aventureiro inspirava o ar moroso e rememorava os acontecimentos do dia. Anya havia chegado da capital, após uma viagem de intercâmbio ao exterior. Estava cheia de maneirismos estrangeiros, a sua mãe dizia; pintara as pontas do cabelo de azul royal, espremia os olhinhos castanhos quando tentava se lembrar de uma palavra em português para uma correspondente em inglês (mesmo que tivesse ficado por apenas três meses no Canadá e seu conhecimento na língua ainda fosse mediano), soltava piadas que ninguém entendia à mesa de jantar. E o pior de tudo, esbravejava sua mãe com os dentes cerrados: pegara a mania de gente metida de não comer nada que viesse de origem animal! Que traição à família, Anya!

Jorge sorriu. Lembrar da irmã caçula com a caçarola de salada nas mãos, entuxando vegetais aos montes na boca, quando lembrava ainda de sua cara de desconfiança, pequenina, ao ser apresentada ao brócolis, fazia-o sorrir. Anya e Jorge eram inseparáveis, afinal, ele era apenas um ano mais velho que ela e, morando tão longe de tudo, sua irmã era a única outra criança disponível diariamente para ele brincar junto. Mesmo agora, adultos, e mesmo depois do tempo em que ela passou no estrangeiro, Jorge e Anya cultivavam a ligação fraterna que possuíam desde sempre. Era por isso que Jorge matutava ansiosamente em como contaria a ela que iria se casar em breve; o pedido de que ela fosse a sua madrinha teria que ser mais do que especial.

Imerso em pensamentos, Jorge não sentiu quando seu cavalo escorregou mais uma vez. Ambos andavam já há mais ou menos uma hora, mas o jovem sentia que o tempo estava se esticando como elástico de pontaria. A lua cheia dava sinais de um deslocamento sutil no firmamento e o ar esfriava um pouco, ainda que o calor fosse um personagem em si daquela trajetória. A monotonia daquela escapadela só foi quebrada quando, ao longe, Jorge avistou uma casa. Destacada em um vale, a casa ostentava uma varanda minúscula, como que uma pérola incrustada em uma concha negra, iluminada por uma lâmpada alaranjada. Entre o cavaleiro e a casa não haviam muros ou cercas, apenas um jardim de dentes-de-leão.
 
De uma forma estranha, a varanda atraía Jorge. Ela lhe parecia familiar, ainda que a sua cabeça latejasse ao tentar se lembrar do porquê. Como se estivesse hipnotizado, ele guiou o cavalo para perto da casa, ignorando a invasão que fazia de uma propriedade alheia. Como às pedras da estrada, os dentes-de-leão eram esmagados um a um pelo peso de ambos. Aproximando-se, Jorge podia ver que a varanda não estava vazia de todo: duas cadeiras compunham a decoração, pesadas em madeira de lei, o estofamento era bordado em tons de vermelho. O chão, também de madeira, parecia ter sido lustrado pelos moradores e refletia a luz elétrica, dando a tudo um ar de melancolia em chamas.

E, então, Jorge puxou as rédeas do cavalo e parou ao pé da escada de dois degraus que levava à varanda. Sentia um gosto amargo na boca, já seca de tanto zanzar pela estrada poeirenta. Passou a mão pelos cabelos aloirados, afastando os fios que estavam colados à testa. Cansado, o cavalo bufou. Jorge entendeu o recado do amigo e desmontou, mas as pernas bambeavam e a aterrisagem não foi muito elegante: Jorge tropeçou e caiu, cortando as palmas das mãos no chão desregular. Inquieto, logo se ajeitou, após alguns impropérios nada ortodoxos proferidos aos vigilantes invisíveis da madrugada. Mais de perto, ele percebeu que dezenas de siriris minúsculos valsavam em volta da lâmpada incandescente.

Entorpecido, o jovem decidiu subir os dois lances que o separavam de seu tesouro precioso. Achou familiar quando, com seu peso, o segundo degrau rangeu, revelando algumas farpas assustadoras. Ainda assim, podia sentir o coração esmurrando-lhe o peito, as mãos pegajosas e os pelos da nuca se eriçando. De repente, ele deu uma gargalhada: como se tornara um protagonista de clichê barato de filme de terror em tão pouco tempo? "Calma, Jorge, se controla". Mais uma passada de mãos pelos cabelos, um tique nervoso que tinha desde criança. Já dentro da varanda, ele começou a procurar pelo interruptor. De algum lugar, uma voz lhe dizia que ele deveria apagar aquela lâmpada. Girava em torno de si mesmo, tateando nas colunas de concreto por uma saliência que lhe desse o prazer de ver aquela varanda obscurecida, iluminada apenas pela lua.

Nada. Nas paredes, nada havia. Jorge piscava mais vezes do que o normal. O cabelo, já estava com um aspecto gorduroso, lambido para trás. Uma coruja piou, empoleirada na árvore retorcida à sudoeste de onde estava. Foi, então, que ele lembrou: a casa poderia ser antiga, portanto, deveria haver outra forma de ligar aquela maldita luz alaranjada. Expirando fortemente para expulsar o desconforto que a situação lhe causava, Jorge olhou para cima e viu, pendendo languidamente à esquerda da lâmpada, uma corda.

Seus olhos se iluminaram. Não sabia o porquê de querer a apagar, só queria. Na verdade, precisava. Precisava apagar a lâmpada. Com os passos mais firmes, caminhou em direção à corda. Ao tocá-la, uma dor aguda atingiu a base de sua coluna. Jorge se ajoelhou, consumido por uma dor que nunca havia sentido antes. Do lado de fora, seu cavalo, incomodado com os gritos desesperados do amigo, relinchava. Depois de longos segundos, eternos segundos, a dor passou tão inesperada quanto surgiu. O rosto belo de Jorge estava agora transfigurado pelo ódio: desligaria aquela lâmpada nem que demorasse a noite inteira! Ele se levantou e caminhou, vacilante, até a corda marrom que balançava pendular. 

"Jorge"... 

Alguém o chamava? Ouvira bem? Envolveu a corda com a mão direita.

"Jay" ...

Seus olhos se arregalaram. Este não era um apelido comum, apenas a sua noiva o chamava assim. Estaria ele imaginando coisas, após o lapso de dor que sentira há pouco? Não, as vozes se amontoavam, chamando-lhe aos sussurros das mais diversas maneiras agora. Ele podia ouvi-las nitidamente, tão insistentes, tão angustiantes... O tom aumentou, já eram gritos. Gritos que rondavam a sua cabeça como os siriris que rondavam a lâmpada. Jorge batia em seus ouvidos, tentando silenciá-los. E, então, ele percebeu que eles vinham da lâmpada. Desesperado, puxou a corda várias vezes, tão forte que ela se soltou em suas mãos.

A varanda, no entanto, permaneceu acesa. Jorge ofegava, suando, enrolado sobre si mesmo. Os chamados já não o incomodavam mais, haviam cessado. Mas, a lâmpada continuava a brilhar e ele, agora, podia ouvir o chiado monótono da eletricidade que emanava dela. "O que eu estou fazendo?". O que ele estava fazendo? Tentando destruir uma lâmpada solitária no meio do interior paulista? Qual era o propósito daquilo tudo? Jorge tentou se levantar, no entanto, sentia um peso estranho em seu braço direito. Ao olhar para ele, notou que havia inchado um tanto e apresentava uma estranha coloração arroxeada, esverdeada. Olhou para trás. Seu cavalo permanecia rígido em seu posto, tenso pela situação que não lhe era habitual.

E, então, Jorge sentiu uma pressão gelada na nuca. Uma mão o convidava a se virar novamente. Em direção à lâmpada. O jovem só não havia desmaiado ainda, pois a adrenalina o mantinha eletrizado. Ele só queria dar um fim àquilo, ir para casa, deitar em sua cama quente e acordar, no outro dia, disposto a ser uma pessoa melhor do que já fora. Mas, sabia - sem saber o por quê - que tudo só teria fim quando apagasse aquela maldita, estúpida, teimosa lâmpada! Jorge decidiu que deveria desrosquear e dar um fim físico à luz nojenta que saía de lá, rastejante. A mão invisível o guiava, gentil, ao seu propósito. Jorge voltou a rir descontroladamente. Chorava enquanto ria. Tremia enquanto chorava.

Sem se importar com o calor insuportável que emanava do bulbo da lâmpada, ele a pegou com a mão esquerda, mesmo que ela não fosse a sua mão costumeira de trabalho. Girou alguns milímetros e, então, a dor insuportável nas costas voltou. Mordendo os lábios até que gotas de sangue lhe pintassem os dentes alvos, Jorge não desistiu. Lentamente, girou mais um pouco. Sentia a lâmpada amolecer entre seus dedos, porém sentia muito mais. De repente, o seu ombro esquerdo explodiu em estrelas doloridas. Assustado, o jovem relanceou o olhar por ele e viu que a sua carne se abria, expondo seus ossos.

Jorge gritava. O seu cavalo forçava a corda que o prendia à árvore em que o seu dono o havia amarrado. Quase sem forças, o jovem usou um último esforço hercúleo para tirar a lâmpada de vez do bocal improvisado. Ela, então, se soltou e atingiu o chão no mesmo momento em que Jorge o fez.

A pequena varanda era iluminada pela luz da lua cheia. No ar, viajava apenas o barulho ressonante da natureza. No entanto, o ouvinte mais atento poderia se ligar no som de duas respirações fracas. Uma vinha do lado de fora, a outra, de dentro da varanda. Uma deu sinais de seu último momento, embalada pela pureza própria aos animais fiéis, a outra, resistia teimosa. Teimoso, Jorge olhava para cima, para a escuridão que tanto custara a ter de volta. A perna direita era uma massa indistinta de carne e ossos triturados. Triturados como o cascalho, triturados como os dentes-de-leão do jardim. Resfolegava, sentindo o gosto metálico do sangue que lhe invadia a garganta. Com os olhos marejados, olhou para cima.

O teto da varanda, que também era feito de madeira, guardava teias de aranha que brilhavam com a luz da lua. Jorge as contou, enquanto se lembrava de sua família. Uma... Seus pais, pessoas simples, mas que sempre amaram seus filhos de forma justa e correta. Duas... Anya, sua querida irmã, sorrindo para ele sempre que zeravam o vídeo-game enquanto comiam salgadinho barato. Três... Carmela, sua noiva, linda em cachos vermelhos, desafiando-o para trilhas arriscadas na praia. 

Quatro...

... e a mente de Jorge já não estava mais na varanda. Lembrava-se da sensação do chão de terra embaixo de si, das unhas sujas e das estrelas, um manto divino acima dele. Lembrava-se de seu cavalo, do amigo que jazia ao seu lado com o pescoço torcido em um ângulo anormal, enquanto que uma poça de sangue tingia de vermelho escuro as pétalas amassadas. Jorge se lembrava do escorregão, da queda... A dor insuportável reverberando em seus ossos expostos...

E quando tudo parecia estar perdido, surgira o caminho até ali. A lâmpada atraente, o ar que insuflava seu peito, antes em pó. Se tudo havia acontecido de verdade, porque ele estava ali? Se tudo aconteceu, por que ele morria novamente? Jorge, então, olhou para os cacos de vidro que jaziam ao redor de si... Enquanto tudo escurecia, ele ouviu alguém lhe chamar pelo nome.

...

- Três reais e quarenta e nove.

...

- Quer sua via?

- Não precisa, obrigada.

- Obrigado e volte sempre.

...

- Cheguei, mãe!

- Anya, que bom. Conseguiu achar a lâmpada?

- Sim, depois te dou o troco...

- Não precisa ver isso agora. Vai lá entregar ela pro seu pai. Ele já tá esperando na varanda.

- Pai!!

- Tô aqui, querida. Vem que já estou com o esquema pronto pra deixar essa lâmpada fixa agora. Não sei como ela quebrou da última vez...

- Deve ter sido um bicho, sei lá... Ou um idiota fazendo gracinha, enquanto a gente tava viajando...

- ... mas agora, não vai quebrar mais! Vem, dá aqui...

...

- Pronto!

- Deu certo, querido?

- Hum.

- Já faz mais de um ano que ele... Vocês realmente acham que isso vai funcionar? Que ele vai voltar por causa dessa lâmpada estúpida?

- Anya!

- Não, querida... Anya, filha, se seu irmão está perdido por aí..! Se ele está perdido..! Vai conseguir achar o caminho de volta para casa. Temos que acreditar!

...
...

- A lâmpada é a única garantia que temos de que seu irmão voltará para casa são e salvo. Vivo..!

- Mas, e a última que já se quebrou... Isso significa que..?

- Anya, por favor...

- Mas, se quebrou! Se quebrou e meu irmão não voltou!

- Por isso que estamos a substituindo... Desde que a varanda permaneça acesa, teremos uma chance de seu irmão voltar.

...

A lenda da varanda iluminada é conhecida, até hoje, por aquelas bandas. É dito que se você passar em frente ao vale, poderá notar uma casa iluminada incrustada na escuridão. E se prestar bem atenção, no silêncio das noites de verão, junto com o coaxar dos sapos, ouvirá a estática da lâmpada sussurrando um único nome.
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"Carlos acordou e fritou um ovo..." A cozinha vazia o incomodava. Pés descalços, o chão frio corroborava para a sensação de desolação que os ladrilhos manchados de gordura lhe causavam na espinha. Em seu desespero para achar o interruptor, seus olhos bateram no relógio digital que descansava no batente da pia: 03:00. Um barulho vergonhoso reverberou em seu estômago. Ele estava com fome, o que poderia fazer? Não era dado a lanches noturnos, mas algo no canto platônico da coruja o convidara a se levantar naquele dia. Rolou pela cama, desvirou o travesseiro, estralou os dedos dos pés... nada. Bebeu água. Coçou a cabeça. Nada. Tentou até mesmo contar carneirinhos, mas nada, nada, nada. O estômago o incomodava, tal qual aquela cozinha maldita, herança de família, semi-tombada, com seus azulejos brancos de hospital e móveis de segunda mão. E, agora, lá estava ele com medo dos fantasmas da madrugada, tateando desesperadamente a parede para encontrar o interruptor. Quando a luz se fez, a sensação de vazio ainda permanecia nele. A fome tornou-se mais insistente e passara a cavucar o espacinho molenga que existia no encontro da cabeça com seu pescoço. Ele, então, decidiu que era a hora. Deu três passos para frente, à iminência de trombar com a mesa de ferro retorcido. Cinco passos para o lado, em direção ao relógio que tiquetaqueava acompanhado da foto de perfil de cantores sertanejos. Mais quatro passos para a frente e lá estava: a geladeira. Abriu. Mas, que raios de luzinha amarela que só liga quando a porta da geladeira está aberta? Ou será que ela dormia, escondida, em plena incandescência, atrás da porta fechada? Pegou o ovo. Com a outra mão, agachou-se para pegar o azeite. Botou ambos na pia. Bocejou. Se estava cansado? Deveras. Mas, como poderia estar outra coisa senão em pânico naquele momento? Sentia o coração marchar dentro do peito. O ar começou a rarear. Precisava fazer logo aqueles ovos mexidos. Ligou o fogão. As cascas que se partiram não eram simétricas. O cheiro de gordura o inebriou de pronto. Alguns minutos e a cozinha não lhe parecia tão assustadora mais. O ovo tinha sabor de recreio e correria. Mas, o que isso importava? Passou pela pia e jogou o prato vazio. Amanhã o lavaria junto com a louça do café da manhã. Sem o ovo, a sensação incômoda retornara a seu peito. Amanhã, não comeria ovos no café da manhã. Quando chegou ao interruptor, sentiu os pelos da nuca se eriçarem... Antes de cair com um baque carmim no chão encerado, olhou para a pia. A louça permaneceria suja. O ar continuaria a rescindir a gemas e claras. ------------ Gregório Duvivier me convidou a criar... Esta é a minha versão de "O ovo". Se quiserem ler as versões que ele criou utilizando as vozes narrativas de autores consagrados, acessem: https://m.folha.uol.com.br/colunas/gregorioduvivier/2013/11/1372847-o-ovo.shtml
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a minha criatividade está bloqueada... e nem k-drama consigo assistir mais. voltei a ler bastante, uma vitória. o canal 55.1 da tv aberta é excelente à noite. velas aromáticas soltam o perfume por onde se elas não queimam como incensos? nunca tinha prestado atenção que Pinóquio tem tantos vilões. romances tristes e reais são meus preferidos no cinema. é inacreditável que Home se tornou minha música preferida do BTS. gelatina não fica gostosa para dar sabor ao bicho de pé. a minha criatividade está bloqueada. e é este fato que te faz ler esse texto desconexo e banal agora. será que ter aulas sobre criatividade ajuda a despertar a criatividade? ou a enterra no pior lugar do chiado mental, como faz com matemática? se eu voltar em breve, é porque ela voltou. sem criatividade bloqueada.
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 Amava a lua solitária / que aparecia no céu escuro de verão./Embaixo da tenda de lona barata,/ouvindo o chiado de uma remota transmissão,/olhava o céu e imaginava que as estrelas eram cardumes/e o céu, tão denso quanto o profundo oceano./Não sabia sobre o espaço e nem sobre os outros planetas/e os satélites; estes, sim, tão pavorosos quanto os navios naufragados./Também não sabia que as estrelas que ele via nunca poderiam ser como peixes,/talvez como iguanas, pinguins e humanos, talvez;/pois esses não têm guelras e se afogam na selva líquida/e as estrelas, como Inês, no vácuo espacial também são rainhas mortas./Mas, do céu noturno, que raios queria aprender?/Conhecimento é para ambientes fechados, o céu, queria apenas contemplar./Amava a deusa virginal e guerreira por entre vinhos e poesia/numa noite de domingo.
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Bonjour, meu nome é Bruna. Sou uma ratinha de biblioteca, adoro fotografar a natureza, andar por ruas desconhecidas e escrever tudo o que me vem a cabeça. Obrigada por visitar o meu jardim. Abra seus olhos e amplie sua imaginação. Talvez você precise bastante por aqui.

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Disclaimer

A ilustração do cabeçalho deste blog pertence à ilustradora Penny Black e foi usada para fins puramente estéticos.
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Programado por Maria Eduarda Nogueira. Base do tema por ThemeXpose