Há dois passos
Ilustração de Beatrix Potter |
Um era moreno. Olhos azuis. Gabava-se do fato, já que alguns de seus irmãos não possuíam o gene que possibilitava possuir o céu no olhar. Na verdade, seus olhos eram mais como o céu que antecede uma tempestade. Eram azuis escuros, fulminantes. Zeus teria seus olhos se os gregos tivessem utilizado uma tinta mais duradoura.
O outro era calvo. O pouco de cabelo que cingia suas orelhas felpudas era branco já. Aquilo que se destacava em seu rosto, entretanto, não era a calvície e nem as orelhas de Rapunzel. O que mais chamava a atenção era o seu nariz. Alguns diriam que o seu formato era adunco. A bem da verdade, o seu nariz parecia uma letra L no meio da cara. Um L gigantesco, cheio de porosidade e batatudo. Quando ria, parecia que seu nariz era uma dançarina do ventre robusta.
Os dois conversavam. Já se conheciam há anos. O Outro havia carregado o Um no colo quando Um era bebezinho.
Nesse instante, um e outro não se respeitavam mais. Ninguém lembrava dos dias de infância de Um. Ninguém se lembrava de como Outro era ótimo em pife, mas sempre deixava que Um ganhasse para ficar contente.
Eles estavam brigando. O motivo já havia se perdido com tantas ofensas trocadas, tantos olhares raivosos e pequenas gotículas de saliva disparadas no calor da língua chicoteando. O tiro em Sarajevo era algo irrelevante quando os ânimos já estavam exaltados há muito tempo.
Um e outro haviam se desentendido por causa de futebol.
Há motivo mais brasileiro do que o futebol? Talvez, Caim fosse palmeirense e Abel, corintiano. Quem sabe Troia e Grécia fossem nomes de torcidas organizadas da Antiguidade? Tudo seria possível se Caim, Abel, Troia e Grécia tivessem nascido em solo tupiniquim.
Um e outro brigavam por causa de um título mal resolvido. Quem ganhou? O meu time ou o seu?
Atritos. As pessoas que estavam ao redor trocavam olhares. Afastavam qualquer coisinha de perto de um e outro: cadeiras, mesa, bibelôs, clipes de papel... Sabiam que quando o assunto era futebol, o melhor a se fazer era esperar a poeira abaixar.
A rusga estava se arrefecendo. As mãos paravam de girar em 180º e começavam a se balançar na direção de um e outro, prontas para um abraço ou mesmo um aperto de mão. Os olhos, tanto o castanho sem graça de outro quanto o azul faiscante de um, começavam a desviar a rota direta e fulminante. As vozes desciam três tons e já não espirrava mais as gotículas de saliva de seus lábios.
Estava quase terminando.
Um e outro aceitaram que o título de 19** havia sido de Outro. Deram-se as mãos. As lembranças antigas voltavam, o pife, a infância de um...
Fim da briga. Fim da festa.
Fim do encontro.
2 comentários
Adorei!
ResponderExcluirBeijos! ;)
Blog: *** Caos ***
Obrigada, miss Helena.
ExcluirBeijos açucarados.