Primeiro de Maio
Os seus pensamentos eram revolucionários.
Tinha 19. Tinha roupas de marca surradas pelo tempo. Tinha um cabelo cheio, tinha uma barba por fazer. Tinha um quarto no segundo andar do apartamento de seus pais.
O seu quarto era grande. Um guarda-roupa cheio de camisetas xadrez e calças jeans. Uma cama de casal com lençol azul royal. Na cabeceira, Marx, García Marquez, Pagu. No som, ao lado, o play reavivaria a voz de Renato Russo. Ele era tão jovem.
Uma estante cobria a parede a frente de sua cama. O peso dos livros curvava as placas brancas de madeira da estrutura. Fazia faculdade, passava mais tempo no grêmio lutando por seus ideais. A estante possuía livros que queria esquecer, mas não queria se desfazer, Hemingway, Disney, Barrie.
Tinha um videogame. Tinha dois meses de francês, inglês na cabeça, português na alma. Tinha porta-retratos com fotos de seus pais vestidos para o ano novo. Foi nesse ano que descobriu ser um menino politizado, reclamado pela revolução.
Desde então, comprara revistas, buscara por blogs, ouvira programas de rádio. Desde então, mudara de vida, virara vegetariano, vira as pessoas com quem cruzava nas ruas. Desde então, participara de reuniões, discutira com os irmãos por tentar mudar seus pensamentos. Ficara de castigo: quebrou a cabeça da boneca Barbie da sua irmã mais nova e colocou-a em um palito de churrasco com um papel colado nele: Contra a intromissão cultural alienante no Brasil!
Tinha 19. Olhava feio para quem o acusava de ser hipócrita por consumir produtos estrangeiros. Tatuara, então, em seu braço, o poema de Pignatari. Pare. Respire.
Era primeiro de maio. Saíra cedo de casa, feriado. Tomou banho, pôs uma roupa qualquer, calçou seus sapatos de sair. Combinou uma reunião com seus colegas no centro de São Paulo para discutir pontos de reforma da faculdade. Lá, um palanque, vários trabalhadores, um carro de som.
Primeiro de maio.
Olhou para os seus amigos. Decidiram participar. Ao ouvir as propostas do orador, gargalhou, aprovou! Reforma social, melhoras para as classes mais pobres, fim de muitos impostos, reforma agrária!
Muito barulho, muita aprovação. Os seus colegas colocavam broches que ganharam dos organizadores em suas camisetas bem passadas.
Ele se sentia estranho, saudoso, pensava em sua família, sua namorada.
Ele se sentia orgulhoso, fora um bom menino. Um bom menino. Os pais sabiam que aquilo era coisa de jovem, já haviam lutado por muitas coisas quando tinham a mesma idade do filho. Os irmãos, sabia que amavam ele, adoravam sua ajuda nas redações, adoravam seu espirito livre. A namorada...
Menina loirinha, alta, olhos azuis. Beleza americana, era cubana. Seus pais eram brasileiros, mudaram-se de novo para o Brasil há cinco anos e abriram um restaurante típico. Amava-a muito, ela o venerava secretamente. Feminista, comunista, alma irmã.
Ele se sentia estranho. Olhou pros amigos comemorando seus pensamentos sendo exteriorizados pelo orador do palanque. Adorava aquelas pessoas que havia conhecido há tanto tempo na escola particular. Olhou para suas mãos suadas, no pulso, um relógio. Marcava duas horas.
O som de cascos de cavalo se fez ouvir. Tiros. A polícia se aproximava, indício de baderneiros entre o grupo. Bancos na Paulista haviam sido quebrados, agora lojas na Sé. Tiros. Gritos, pisoteio, áudio de jornalistas nas calçadas circundantes. Os amigos correram, chamaram-no. Uma mulher passou em sua frente, uma arma apontada para si. Pulou em sua frente.
Vazio. Sem som nenhum além do sangue em seus ouvidos.
Caiu.
Passou a mão em seu peito, um buraco. O sangue escorria de seus ouvidos e ia para a garganta frágil sem amídala. Sufocava-o. A mulher estava ao seu lado chorando com um celular no ouvido. Repórteres começaram a cerca-lo, microfones na mão, canetas de tinta preta furiosas nos blocos de anotação.
O sangue chegou em seus lábios, colorindo-os com a cor que representou por tanto tempo o que tinha na mente e na alma. A mulher curvou-se sobre ele e pôs a mão em sua nuca. Falou algo. "Está tudo bem. Você vai ficar bem".
Ele sorriu, os dentes de baixo tortos que nunca consertou cobertos pelo liquido viscoso tipo A. Rh positivo.
Os seus olhos foram cobertos por uma película embaçada. Sentia-se leve, em paz. Queria dormir.
Dormiu.
Tinha 19. Tinha roupas de marca surradas pelo tempo. Tinha um cabelo cheio, tinha uma barba por fazer. Tinha um quarto no segundo andar do apartamento de seus pais.
O seu quarto era grande. Um guarda-roupa cheio de camisetas xadrez e calças jeans. Uma cama de casal com lençol azul royal. Na cabeceira, Marx, García Marquez, Pagu. No som, ao lado, o play reavivaria a voz de Renato Russo. Ele era tão jovem.
Uma estante cobria a parede a frente de sua cama. O peso dos livros curvava as placas brancas de madeira da estrutura. Fazia faculdade, passava mais tempo no grêmio lutando por seus ideais. A estante possuía livros que queria esquecer, mas não queria se desfazer, Hemingway, Disney, Barrie.
Tinha um videogame. Tinha dois meses de francês, inglês na cabeça, português na alma. Tinha porta-retratos com fotos de seus pais vestidos para o ano novo. Foi nesse ano que descobriu ser um menino politizado, reclamado pela revolução.
Desde então, comprara revistas, buscara por blogs, ouvira programas de rádio. Desde então, mudara de vida, virara vegetariano, vira as pessoas com quem cruzava nas ruas. Desde então, participara de reuniões, discutira com os irmãos por tentar mudar seus pensamentos. Ficara de castigo: quebrou a cabeça da boneca Barbie da sua irmã mais nova e colocou-a em um palito de churrasco com um papel colado nele: Contra a intromissão cultural alienante no Brasil!
Tinha 19. Olhava feio para quem o acusava de ser hipócrita por consumir produtos estrangeiros. Tatuara, então, em seu braço, o poema de Pignatari. Pare. Respire.
Era primeiro de maio. Saíra cedo de casa, feriado. Tomou banho, pôs uma roupa qualquer, calçou seus sapatos de sair. Combinou uma reunião com seus colegas no centro de São Paulo para discutir pontos de reforma da faculdade. Lá, um palanque, vários trabalhadores, um carro de som.
Primeiro de maio.
Olhou para os seus amigos. Decidiram participar. Ao ouvir as propostas do orador, gargalhou, aprovou! Reforma social, melhoras para as classes mais pobres, fim de muitos impostos, reforma agrária!
Muito barulho, muita aprovação. Os seus colegas colocavam broches que ganharam dos organizadores em suas camisetas bem passadas.
Ele se sentia estranho, saudoso, pensava em sua família, sua namorada.
Ele se sentia orgulhoso, fora um bom menino. Um bom menino. Os pais sabiam que aquilo era coisa de jovem, já haviam lutado por muitas coisas quando tinham a mesma idade do filho. Os irmãos, sabia que amavam ele, adoravam sua ajuda nas redações, adoravam seu espirito livre. A namorada...
Menina loirinha, alta, olhos azuis. Beleza americana, era cubana. Seus pais eram brasileiros, mudaram-se de novo para o Brasil há cinco anos e abriram um restaurante típico. Amava-a muito, ela o venerava secretamente. Feminista, comunista, alma irmã.
Ele se sentia estranho. Olhou pros amigos comemorando seus pensamentos sendo exteriorizados pelo orador do palanque. Adorava aquelas pessoas que havia conhecido há tanto tempo na escola particular. Olhou para suas mãos suadas, no pulso, um relógio. Marcava duas horas.
O som de cascos de cavalo se fez ouvir. Tiros. A polícia se aproximava, indício de baderneiros entre o grupo. Bancos na Paulista haviam sido quebrados, agora lojas na Sé. Tiros. Gritos, pisoteio, áudio de jornalistas nas calçadas circundantes. Os amigos correram, chamaram-no. Uma mulher passou em sua frente, uma arma apontada para si. Pulou em sua frente.
Vazio. Sem som nenhum além do sangue em seus ouvidos.
Caiu.
Passou a mão em seu peito, um buraco. O sangue escorria de seus ouvidos e ia para a garganta frágil sem amídala. Sufocava-o. A mulher estava ao seu lado chorando com um celular no ouvido. Repórteres começaram a cerca-lo, microfones na mão, canetas de tinta preta furiosas nos blocos de anotação.
O sangue chegou em seus lábios, colorindo-os com a cor que representou por tanto tempo o que tinha na mente e na alma. A mulher curvou-se sobre ele e pôs a mão em sua nuca. Falou algo. "Está tudo bem. Você vai ficar bem".
Ele sorriu, os dentes de baixo tortos que nunca consertou cobertos pelo liquido viscoso tipo A. Rh positivo.
Os seus olhos foram cobertos por uma película embaçada. Sentia-se leve, em paz. Queria dormir.
Dormiu.
4 comentários
Achei um post digno mesmo de primeiro de maio. também queria dizer que relacionei esse personagem que você criou com MUITA GENTE MESMO que eu conheço.
ResponderExcluirMas... posso estar enganada, senti um tom de crítica na sua narrativa? Afinal, os repórtores vieram todos circundar o jovem branco, da classe média, que morreu enquanto protestava. Eles nunca vão atrás dos pobres que morrem todos os dias!
Você escreve uns textos lindos! Não pare nunca, por favor (:
Abraços
Bom dia, miss Lu!
ExcluirVocê não sabe o quanto fiquei contente e emocionada por seu comentário assim que o li! Obrigada pelo elogio a minha forma de escrever, prometo que nunca pararei ainda mais com o retorno que estou tendo neste blog.
Sim, quando eu comecei a escrever esse capítulo, pensava em retratar um jovem de classe média alta que possuía ideais comunistas sem estereotipá-lo, pois também tenho muitos amigos que se encaixam na minha descrição. Contudo, ao passo que escrevia, fui transformando o meu texto em uma crítica tanto à repressão exagerada dos policiais quanto a grande imprensa que torna mortes em shows, ainda mais relacionadas a jovens mais ricos.
Obrigada de verdade.
Beijos açucarados.
🏆🏆🏆🏆🏆😟😟😟
ResponderExcluirObrigada, te amo.
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