Primeiro e último conselho de um mestre

by - fevereiro 21, 2019

Fonte:  xRrinei/Deviantart  

Entrei em sua velha casa. O ambiente era agradável e havia um aroma de baunilha e fumo no ar. A decoração era pouca, não parecia que a casa pertencia a ele, o conhecendo e sabendo de todas as coisas que ele falava. Ao me receber, abriu um largo sorriso, não me via há tempos.

Nos acomodamos em cadeiras em volta de uma pequena mesa de café, e ele começou falando:

— Como tem passado? — Perguntou com um calmo semblante. Parecia já saber a resposta.

Respondi que ia bem, mas o caminho não andava fácil. Ele serviu café. “A Universidade não é um lugar para os fracos. A solidão pode te esmagar, e você mais cedo ou mais tarde tem que encontrar um jeito de lidar com isso, nem que sendo fugindo daquele lugar imenso”, comentei quase em desabafo.

“A solidão é mesmo avassaladora.” Respondeu. Seus olhos pairavam num voo baixo, e seus lábios se comprimiam enquanto balançava a cabeça como em um aceno. “E os alunos?”

Mesmo sendo professor há um punhado de anos, eu nunca havia visto pessoas tão frias e sem vontade de conhecer a vida quanto os alunos da Alta Academia. Relatei esse pensamento, e ele balançou novamente a cabeça.

— Não há lugar mais maçante que a academia. — Comentou como se falasse ao vento, e me olhou com profundidade. Minha próxima pergunta já residia em sua mente. Ele apenas esperava minha atitude.

— Gostaria de finalmente me pôr em ação, concretizar meu sonho de virar escritor. Tenho a vontade de escrever sobre um jovem professor, assim como eu.

Ele puxou seu diário. Chamava-o de seu próprio “manual para a vida”. Olhava-o com admiração, mas desesperançoso. “Sabe que era este o livro que gostaria de deixar ao mundo. Algo que realmente eu pudesse fazer pelos que buscam, como você.” Ele sabia das minhas ânsias.

— Quero escrever. Quero fazer como você e deixar a todos que me conhecem, ao menos, minha própria maneira de ver a vida, de ler o mundo. — Diminui o ritmo de minha fala, hesitante — Eu preciso que eles leiam e pensem em mim. Para que eu possa estar aqui, realmente. Não somente com meu corpo, mas com a alma. Pois não desejo a fama, mas a confiança do coração das pessoas.

— Que tipo de livro você quer escrever? — Ele disse em um tom desafiador. As rugas entre os olhos se alongavam e as pálpebras cerravam, como se quisessem me ver melhor.

“Algum dia, de todos os tipos. Agora, uma ficção, uma história verdadeiramente inspiradora.” Ele se espantou. Quase riu, mas tudo que vi foi uma tremulação em seus lábios.

“O que você sabe sobre a vida?” Ele me perguntou. Eu fiquei em silêncio, sem saber como responder. Quase me ofendi com a pergunta, mas respeitei sua sabedoria. Afinal, lá ele era o professor. Eu o aluno.

— Penso que sei muita coisa, mas ainda sou jovem. Se isso me impede, eu não entendo o por quê.

Por pouco eu terminaria a frase.

— Porque não é a hora. Espere. Não faça isso agora. — Meu peito era um vazio ao ouvir isso. Por meses insisti que esse era meu sonho. Que a vida docente era plana, rasa e imutável, que esse era meu destino e eu tinha de pô-lo em movimento agora. Tudo isso rolava no chão enquanto ele tomava mais um gole de café. — Aprenda mais. Leia mais e viva mais. Escreva outros livros. Então saberá o que precisa para escrever o seu livro da vida.

Eu estava frustrado, mas eu entendia. Era um cronista amador, nunca havia escrito um texto de mais de cinco páginas. Reconheci o tamanho de minha ambição e me calei. Ele seguiu:

— Isso não é uma decisão que se faça em pouco tempo, nem com pouca vivência. Este é um trabalho que exige muito de você como pessoa. Muita energia, muito tempo, muita vida. Agora não é a hora. Viva o que a vida ainda lhe deve, e não deixe que ela ouça seus planos de cortar sua extensão, pois ela te castigará, e os tempos em frente às letras serão de penitência, ao invés de prazer. Ainda não é a sua hora de assumir essa responsabilidade.

Achei que estaria triste ao ouvir suas palavras, mas algo tomou minha mente. Uma imensa paz, uma sensação quase de alívio por ouvir aquilo. Como estava satisfeito em ouvi-lo dizer “Você não está pronto”! Como me enchi de esperança ao ouvir que não sei o que preciso ainda! Pois agora sabia, sabia que não sabia tudo, e que ainda havia muito mais a descobrir!

— Nossa existência não é apenas o que fazemos e como vivemos. Você diz que quer falar sobre a vida, ainda assim tem assuntos a resolver. Traumas de infância a sanar, amor para descobrir e para vivenciar. Você pensa na vida como um estudo, mas esquece da prática. — Seus olhos brilhavam enquanto falava. Não o havia lido, mas sabia que estas mesmas palavras estavam em seu “Manual da Vida”.

Pensei que havia lido tudo que precisava. Que havia me tornado tão sábio quanto inteligente. Mas aquela ilusão se quebrou em uma frase, e eu era o ignorante dos mais perversos. De fato, talvez o mal de hoje seja não conseguirmos ver a nós mesmos como ignorantes. Talvez todos nós, como eu, precisemos de um mestre.

“Escute meu conselho” ele disse calmamente. “Há muito mais para viver do que se pode aprender. Há muito mais para se descobrir do que se pode ler. Leia as pessoas, leia o céu, leia a terra, leia o amor e aprenda a ler a vida”. Se reclinou. “Só se pode escrever após aprender a ler. Ainda assim é cedo. Só se escreve verdadeiramente quando já se leu tudo que precisava ler. Você ainda está no início desse caminho, e há muito a se viver, meu jovem amigo.”

— Obrigado. — Eu estava estupefato, paralisado. Aquele velho mago me pegou de surpresa — não vim aqui esperando ouvir essas palavras, mas elas me fizeram melhor que qualquer outra.

— Vamos voltar a nos ver. Sei que veio buscando conhecimento, mas hoje isso é tudo que eu posso lhe ensinar. Quando estiver pronto, me traga uma cópia de seu livro, e eu vou levá-lo a Deus quando morrer.

“Ouça” sua voz grave ecoou em minha alma. “O primeiro e último conselho desse mestre. Quando voltar não terei mais nada a lhe ensinar, pois já saberá tudo que precisa saber.”

Estas foram as palavras que ele me disse. Talvez, elas já estivessem escritas, e eu talvez já até as tivesse lido. Mas não se pode ler um livro no escuro. A vida é escrita com suas longas e desconfortáveis linhas. Fui à casa do Mestre procurando conhecimento, um incentivo para minhas ambições, mas saí de lá com algo além do que eu estava preparado para descobrir: que ainda não estava pronto, e um longo caminho se estendia diante de mim.

Aquele dia talvez não tenha aprendido nada de novo, mas descobri algo em mim mesmo. Algo que sempre possuí em mim, mas nunca dominei. Algo muito além do que imaginava que podia fazer, e que me prepararia para a jornada, para escrever o meu Livro da Vida. Aquele dia, com aquele conselho, com a ajuda dele, fiz a descoberta mais importante da minha vida. Descobri que sabia ler.

-------------------------------------------------------------------------------
*Esse conto foi escrito por Marcus De Rosa, um amigo que o jornalismo me deu. Eu estou tentando ampliar um pouquinho as vozes que ecoam em meu jardim. Espero que tenham acolhido o texto do Marcus tanto quanto vocês, gentilmente, acolhem os meus sempre.

Au revoir.

Você também pode gostar de

1 comentários