O presente de Krampus
Sophia estava parada em frente à árvore de Natal "Charlie Brown" que seus pais haviam comprado naquele ano. Ela era de plástico, o verde fosforescente do que eram para ser as folhas do pinheiro agrediam seus olhos, esteticamente refinados. Afinal, porque raios haviam folhas até mesmo no tronco? Isso não estava certo, assim como o Natal daquele ano, o primeiro que passariam na casa nova.
Eles haviam se mudado para lá há cerca de cinco meses, porém Sophia ainda não se acostumara com a nova residência. Ela era dolorosamente menor do que sua antiga casa. Agora, tinha até mesmo que dividir seu quarto com as gêmeas e - o cúmulo do absurdo - dormir na cama anexa a uma das camas das irmãs. Seus longos cabelos loiros quase tocavam o chão quando se deitava lá, obrigando-a a prendê-los em duas tranças grossas todas as noites.
Na casa antiga, ela tinha um quarto só para ela. Dentro dele, ela tinha seu pequeno País das Maravilhas: um closet que ia de parede à parede; uma cama queen size coberta por pelúcias que trouxera da sua última viagem à Disney; um painel com as fotos de suas melhores amigas e um pisca-pisca que sempre estava ligado. Agora, seus pais haviam imposto uma regra (tosca, na opinião dela) sobre o pisca-pisca que havia sido instalado na janela da sala: ele só poderia ser ligado no mês de Dezembro e seria desligado na primeira semana de Janeiro, nem um dia a mais.
Junta todas essas regras - ridículas - que estavam acabando com o Natal de Sophia com os enfeites - irritantemente simplórios - com os quais sua mãe e as gêmeas haviam decorado a árvore deles. A garota tinha certeza absoluta de que aquele era o pior Natal da vida dela. Era culpa dos pais? Não, não conseguia culpa-los tanto assim. Afinal, sua mãe perdera o emprego quando ficou grávida das irmãs de Sophia e nunca mais conseguira se integrar no mercado de trabalho. E seu pai, há exatamente sete meses, também perdera o seu e, ainda mais, tivera que gastar boa parte de suas economias no tratamento de uma doença da avó. Então, Sophia não as culpava. Culpava, sim, o Universo, Deus, sei lá. Culpava a todos, inclusive o - estúpido - Papai Noel em que suas irmãzinhas acreditavam, mas que, com certeza, havia se esquecido dela naquele ano.
Deu uma última olhada para a dançarina de papel que girava com o vento na árvore de Natal e se virou para subir ao seu - pseudo - quarto. Quem sabe a voz de Mariah a animava um pouco?
22:00.
Krampus direcionava sua bússola. Na verdade, batia em sua estrutura metálica com suas longas unhas amareladas, fazendo um "tic, tic, tic" que se assemelhava a um pica-pau trabalhando, tomando o máximo de cuidado que conseguia para que ele não quebrasse. Não podia se dar a esse luxo, afinal, a conquista da bússola para identificar seus presenteados na Véspera de Natal fora uma concessão bastante gentil do velho Nick naquele ano. Antes, Krampus tinha que usar apenas a sua sensibilidade apurada - e a memória - para encontrar as casas daqueles que mereciam a honra de sua visita.
Na sétima batida, o ponteiro dourado voltou a girar loucamente dentro do vidro. Krampus deu um sorriso e seus olhos, fundos e caninos em seu rosto, cintilaram: o ponteiro havia se virado em direção a uma casa na esquina direita a que estava, uma casa simples, mas arrumadinha, cujas janelas do quarto e da sala se iluminavam com as luzes azuis do pisca-pisca. Ao olhar para casa, Krampus se lembrou do motivo pelo qual o ponteiro da bússola o indicara lá: uma garota de nariz empinado e longos cabelos loiros chamada Sophia.
Ele se levantou do telhado em que estava e fechou os olhos. Em sua mente, o objeto que seria seu presente à garotinha se formava. Percorrendo seu corpo como a adrenalina percorre o dos humanos, a magia irradiava nas veias de suas mãos, que giravam, e começavam a materializar o seu presente a ela. Krampus estava sem pressa alguma - Nick ainda estava a uma hora de chegar até aquele lugar, então poderia fazer seu trabalho na completa paz. Acrescentou os mais ricos detalhes no presente de Sophia e quando sentiu que estava pronto, ao mesmo tempo em que a magia começava a fazer o caminho contrário em suas veias, tomou impulso em direção ao telhado da casa amarela da outra esquina.
22:10.
Sophia levantou os olhos do notebook, aonde Mariah se esgoelava no falsete de "All I want for Christmas". Aquilo que ela vira por trás dos vidros sujos da janela de seu quarto foram chifres? E aqueles chifres estavam indo em direção a sala de estar?
Ela se levantou da cama da irmã e foi abrir a janela. Olhou em volta: primeiro em direção de onde o vulto havia surgido, depois, em direção para onde ele tinha ido. Porém, não conseguira mais ver nada. Será que estava começando a alucinar naquela casinha? E então, Sophia ouviu um estrondo vindo mesmo da sala.
Seus pais e as gêmeas haviam ido comprar um item que estava faltando na Ceia de Natal e, com alívio, deixaram a cara emburrada da filha mais velha para trás. Agora, sozinha, tudo o que Sophia poderia fazer para comprovar sua teoria dos chifres era descer até a sala o mais delicadamente possível. E foi isso que ela fez.
22:20.
Por que raios ele tinha derrubado aquela - estúpida - arvorezinha de Natal? Nunca Krampus tinha sido tão descuidado em suas operações natalinas... E agora ele tinha que ficar colocando enfeite por enfeite nos galhos de novo, desejando aos deuses que ninguém o tivesse ouvido. Mas, o que ele não sabia era que Sophia havia ouvido... E o olhava, aterrorizada, do alto da escada.
"O que você está fazendo aqui? É um ladrão?" - perguntou Sophia, sabendo de antemão que teria uma resposta negativa. Ela sabia quem ele era. Krampus. E sabia por que ele estava de pé no meio da sua sala de estar, com a bailarina de papel em seus dedos enormes de unhas horríveis. Era culpa dela. Ela seria a sua presenteada naquele ano.
"Eu sei que sabe quem sou eu, Sophia. Aliás, meu feliz Natal para você!" - ele disse, com uma voz muito diferente da que Sophia havia imaginado. Era uma voz mais comum, mais sensível e muito sarcástica. Era um tom do qual gostava muito.
"Feliz Natal, senhor Krampus. Algo para mim esse ano?" - perguntou Sophia, com lágrimas nos olhos e as mãos tremendo.
Krampus virou-se para ela. Viu o medo nos seus olhos, mas também viu uma raiva inconformada que o angustiava. Será que Sophia merecia mesmo a sua visita? Não era caso do Velho Nick dar só algumas pepitas de carvão para ela e tudo estaria resolvido? Krampus hesitou antes de responder à menina. O presente que havia preparado para ela pesava no bolso de seu longo casaco.
22:35.
Sophia descera completamente as escadas. Krampus ainda hesitava, mas agora parecia mais raciocinar com seus olhos verdes fechados, o cheiro de grama recém cortada exalando dele. Krampus não era exatamente um monstro... Era uma figura mitológica que encantava Sophia muito. Ele era a personificação dos deuses antigos, proibidos, pagãos da floresta. Seus longos chifres tinham um trabalhado que parecia ter sido feito por pequeninas mãos de fadas, heras se enrolavam em seu sobretudo e flores delicadas saltavam de seus bolsos.
Mas, Sophia sabia que mesmo sendo encantador, Krampus era para ser temido. Ele era justo, mais do que o Papai Noel era nos Natais mundo afora. E Sophia sabia que a justiça de Krampus não lhe era favorável.
22:50.
Finalmente, Krampus abrira os olhos. Sentia que seu tempo estava acabando. Sentia a energia dos outros membros da família de Sophia se aproximando mais e mais da casa em que estava. Era preciso agir, agir com Sophia, a sua última presenteada.
23:00.
Já fazia quase uma hora desde que Krampus chegara a casa de Sophia. A garota se sentara no sofá, os olhos fixos na figura que pensava, prostrada no meio da sua sala de estar. O ar ficara mais frio. Agora, ela sentia mais do que o aroma de grama cortada: sentia o cheiro de flores silvestres, morangos e águas claras. Também sentia seu estômago revirar, seus olhos eram dois mares sem contenções. Ela havia se arrependido de seu desgosto e mal humor durante todos aqueles meses. Lembrara-se de como seus pais eram carinhosos e suas irmãzinhas, adoráveis e divertidas. Lembrara-se de ser grata por ter uma família assim e por, mesmo pequena e muito simples, ter uma casa para a abriga-la no Natal. Sophia entendeu que nada do que achava ter sentido, tinha de fato. Nada, nem mesmo achar que a vida de outras pessoas mais ricas, como Mariah, era melhor.
E, então, Sophia sentiu longas unhas tocarem o seu ombro. Krampus a olhava de cima, seu rosto de traços delicados e os longos chifres não a amedrontavam mais. Ela queria tocar em seus cabelos encaracolados de um tom dourado como o trigo. Ele abria e fechava a boca, ensaiando o que iria dizer. Parecia frustrado, mas aliviado ao mesmo tempo.
"Você era a minha última presenteada desse ano" - Krampus começou a dizer, quando um filhote de Bem-Te-Vi apareceu por entre seus cabelos, assustado. Ele, delicadamente, o pegou e colocou no parapeito da janela da sala de Sophia. O Bem-Te-Vi estufou o peito corajosamente e bateu suas asinhas, mas o voô ainda não fora possível. Krampus riu - uma risada melodiosa, de uma cadência diferente da do Papai Noel, menos ritmada - e pegou o pássaro novamente nas mãos. "Seu presente era lindo, Sophia. Que pena que já não poderei dá-lo a você".
Sophia olhou-o consternada. Se não ficasse com o presente de Krampus, como poderia saber que tudo aquilo fora real? Como poderia lembrar-se de que ele era real? Ela queria lembrar-se dele para todo o sempre. "Não, eu quero o seu presente. Eu entendo, eu sei que mudei, mas não quero esquecer nunca de que você existe, nunca", gritou Sophia desesperadamente. Krampus sorriu e pôs a mão direita no bolso. Ele sentia o peso, não do presente, mas no coração.
"Tome, então. E não se arrependa depois. Eu... Eu trabalhei muito nele, mas era para a antiga Sophia, a que merecia presentes justos. Espero que goste mesmo assim. E, Sophia..." - Krampus a olhou nos olhos, vendo o que ele não queria ver. Aquilo que não desejava ser real, aquilo que era o seu carvão de Nicolau: o amor. Sophia não o via como ele queria que visse e aquilo era uma aconchegante tortura para ele. "Não sinta isso, por favor".
E então ele deu a ela uma caixa dourada como seus cabelos, trabalhada com galhos retorcidos, pequenas flores metálicas e um feixe em formato de pássaro. Em sua maravilha, Sophia não viu que Krampus já tinha ido embora para as florestas do Polo Norte, uma viagem teu durou segundos. Só o tempo de ela levantar os olhos para agradecer e se ver frustrada por ter apenas um ramo de visco em seu tapete.
00:00.
Nicolau entrou pela chaminé como de costume. Dois presentes para as gêmeas, um presente mal-embrulhado pela correria, já que não acreditava que seria dado, para Sophia. Quando se aproximou da árvore de Natal, porém, ele viu que algo estava errado: lá já estava um presente mágico. Nicolau tomou a caixinha dourada em mãos e, com facilidade, a abriu sem que o lacre fosse quebrado. Ele era um menino mau por causa dessa espiadela? Oras, mas quem saberia, não é mesmo?
A caixa se abriu com um clique que parecia o soar de um pica-pau trabalhando. Dentro dela, havia um coração feito de um metal cinza, retorcido e delicadamente grotesco com os dizeres entalhados: "É teu o que a ti pertence".
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