A varanda iluminada

by - outubro 23, 2022


O som de cascos derrapando pode ser ouvido a um raio de cem metros. A noite estava escura, como se estivesse à espreita predadora de algo, silenciosa. O chão de cascalhos soltos não lhe dava a estabilidade ideal para um passeio à cavalo mas, mesmo assim, Jorge escolheu sair um pouco de casa a fim de tomar um ar fresco naquela noite abafada de verão. Insetos rondavam-lhe as pernas desnudas, zanzando em volta das orelhas de seu companheiro de anos, amigo de infância, montaria puro-sangue. Na estrada vazia, o interior de São Paulo lhe sussurrava acordes naturais assustadores. Os grilos faziam a festa costumeira por entre as moitas de mato queimado nas pontas, os sapos coaxavam na lagoa a noroeste. Sozinho e calorento, Jorge seguiu pela trilha que não lhe era tão amiga.

A cada passada que seu cavalo dava, triturando as pedrinhas, espantando seres rastejantes que saíam de suas tocas; o aventureiro inspirava o ar moroso e rememorava os acontecimentos do dia. Anya havia chegado da capital, após uma viagem de intercâmbio ao exterior. Estava cheia de maneirismos estrangeiros, a sua mãe dizia; pintara as pontas do cabelo de azul royal, espremia os olhinhos castanhos quando tentava se lembrar de uma palavra em português para uma correspondente em inglês (mesmo que tivesse ficado por apenas três meses no Canadá e seu conhecimento na língua ainda fosse mediano), soltava piadas que ninguém entendia à mesa de jantar. E o pior de tudo, esbravejava sua mãe com os dentes cerrados: pegara a mania de gente metida de não comer nada que viesse de origem animal! Que traição à família, Anya!

Jorge sorriu. Lembrar da irmã caçula com a caçarola de salada nas mãos, entuxando vegetais aos montes na boca, quando lembrava ainda de sua cara de desconfiança, pequenina, ao ser apresentada ao brócolis, fazia-o sorrir. Anya e Jorge eram inseparáveis, afinal, ele era apenas um ano mais velho que ela e, morando tão longe de tudo, sua irmã era a única outra criança disponível diariamente para ele brincar junto. Mesmo agora, adultos, e mesmo depois do tempo em que ela passou no estrangeiro, Jorge e Anya cultivavam a ligação fraterna que possuíam desde sempre. Era por isso que Jorge matutava ansiosamente em como contaria a ela que iria se casar em breve; o pedido de que ela fosse a sua madrinha teria que ser mais do que especial.

Imerso em pensamentos, Jorge não sentiu quando seu cavalo escorregou mais uma vez. Ambos andavam já há mais ou menos uma hora, mas o jovem sentia que o tempo estava se esticando como elástico de pontaria. A lua cheia dava sinais de um deslocamento sutil no firmamento e o ar esfriava um pouco, ainda que o calor fosse um personagem em si daquela trajetória. A monotonia daquela escapadela só foi quebrada quando, ao longe, Jorge avistou uma casa. Destacada em um vale, a casa ostentava uma varanda minúscula, como que uma pérola incrustada em uma concha negra, iluminada por uma lâmpada alaranjada. Entre o cavaleiro e a casa não haviam muros ou cercas, apenas um jardim de dentes-de-leão.
 
De uma forma estranha, a varanda atraía Jorge. Ela lhe parecia familiar, ainda que a sua cabeça latejasse ao tentar se lembrar do porquê. Como se estivesse hipnotizado, ele guiou o cavalo para perto da casa, ignorando a invasão que fazia de uma propriedade alheia. Como às pedras da estrada, os dentes-de-leão eram esmagados um a um pelo peso de ambos. Aproximando-se, Jorge podia ver que a varanda não estava vazia de todo: duas cadeiras compunham a decoração, pesadas em madeira de lei, o estofamento era bordado em tons de vermelho. O chão, também de madeira, parecia ter sido lustrado pelos moradores e refletia a luz elétrica, dando a tudo um ar de melancolia em chamas.

E, então, Jorge puxou as rédeas do cavalo e parou ao pé da escada de dois degraus que levava à varanda. Sentia um gosto amargo na boca, já seca de tanto zanzar pela estrada poeirenta. Passou a mão pelos cabelos aloirados, afastando os fios que estavam colados à testa. Cansado, o cavalo bufou. Jorge entendeu o recado do amigo e desmontou, mas as pernas bambeavam e a aterrisagem não foi muito elegante: Jorge tropeçou e caiu, cortando as palmas das mãos no chão desregular. Inquieto, logo se ajeitou, após alguns impropérios nada ortodoxos proferidos aos vigilantes invisíveis da madrugada. Mais de perto, ele percebeu que dezenas de siriris minúsculos valsavam em volta da lâmpada incandescente.

Entorpecido, o jovem decidiu subir os dois lances que o separavam de seu tesouro precioso. Achou familiar quando, com seu peso, o segundo degrau rangeu, revelando algumas farpas assustadoras. Ainda assim, podia sentir o coração esmurrando-lhe o peito, as mãos pegajosas e os pelos da nuca se eriçando. De repente, ele deu uma gargalhada: como se tornara um protagonista de clichê barato de filme de terror em tão pouco tempo? "Calma, Jorge, se controla". Mais uma passada de mãos pelos cabelos, um tique nervoso que tinha desde criança. Já dentro da varanda, ele começou a procurar pelo interruptor. De algum lugar, uma voz lhe dizia que ele deveria apagar aquela lâmpada. Girava em torno de si mesmo, tateando nas colunas de concreto por uma saliência que lhe desse o prazer de ver aquela varanda obscurecida, iluminada apenas pela lua.

Nada. Nas paredes, nada havia. Jorge piscava mais vezes do que o normal. O cabelo, já estava com um aspecto gorduroso, lambido para trás. Uma coruja piou, empoleirada na árvore retorcida à sudoeste de onde estava. Foi, então, que ele lembrou: a casa poderia ser antiga, portanto, deveria haver outra forma de ligar aquela maldita luz alaranjada. Expirando fortemente para expulsar o desconforto que a situação lhe causava, Jorge olhou para cima e viu, pendendo languidamente à esquerda da lâmpada, uma corda.

Seus olhos se iluminaram. Não sabia o porquê de querer a apagar, só queria. Na verdade, precisava. Precisava apagar a lâmpada. Com os passos mais firmes, caminhou em direção à corda. Ao tocá-la, uma dor aguda atingiu a base de sua coluna. Jorge se ajoelhou, consumido por uma dor que nunca havia sentido antes. Do lado de fora, seu cavalo, incomodado com os gritos desesperados do amigo, relinchava. Depois de longos segundos, eternos segundos, a dor passou tão inesperada quanto surgiu. O rosto belo de Jorge estava agora transfigurado pelo ódio: desligaria aquela lâmpada nem que demorasse a noite inteira! Ele se levantou e caminhou, vacilante, até a corda marrom que balançava pendular. 

"Jorge"... 

Alguém o chamava? Ouvira bem? Envolveu a corda com a mão direita.

"Jay" ...

Seus olhos se arregalaram. Este não era um apelido comum, apenas a sua noiva o chamava assim. Estaria ele imaginando coisas, após o lapso de dor que sentira há pouco? Não, as vozes se amontoavam, chamando-lhe aos sussurros das mais diversas maneiras agora. Ele podia ouvi-las nitidamente, tão insistentes, tão angustiantes... O tom aumentou, já eram gritos. Gritos que rondavam a sua cabeça como os siriris que rondavam a lâmpada. Jorge batia em seus ouvidos, tentando silenciá-los. E, então, ele percebeu que eles vinham da lâmpada. Desesperado, puxou a corda várias vezes, tão forte que ela se soltou em suas mãos.

A varanda, no entanto, permaneceu acesa. Jorge ofegava, suando, enrolado sobre si mesmo. Os chamados já não o incomodavam mais, haviam cessado. Mas, a lâmpada continuava a brilhar e ele, agora, podia ouvir o chiado monótono da eletricidade que emanava dela. "O que eu estou fazendo?". O que ele estava fazendo? Tentando destruir uma lâmpada solitária no meio do interior paulista? Qual era o propósito daquilo tudo? Jorge tentou se levantar, no entanto, sentia um peso estranho em seu braço direito. Ao olhar para ele, notou que havia inchado um tanto e apresentava uma estranha coloração arroxeada, esverdeada. Olhou para trás. Seu cavalo permanecia rígido em seu posto, tenso pela situação que não lhe era habitual.

E, então, Jorge sentiu uma pressão gelada na nuca. Uma mão o convidava a se virar novamente. Em direção à lâmpada. O jovem só não havia desmaiado ainda, pois a adrenalina o mantinha eletrizado. Ele só queria dar um fim àquilo, ir para casa, deitar em sua cama quente e acordar, no outro dia, disposto a ser uma pessoa melhor do que já fora. Mas, sabia - sem saber o por quê - que tudo só teria fim quando apagasse aquela maldita, estúpida, teimosa lâmpada! Jorge decidiu que deveria desrosquear e dar um fim físico à luz nojenta que saía de lá, rastejante. A mão invisível o guiava, gentil, ao seu propósito. Jorge voltou a rir descontroladamente. Chorava enquanto ria. Tremia enquanto chorava.

Sem se importar com o calor insuportável que emanava do bulbo da lâmpada, ele a pegou com a mão esquerda, mesmo que ela não fosse a sua mão costumeira de trabalho. Girou alguns milímetros e, então, a dor insuportável nas costas voltou. Mordendo os lábios até que gotas de sangue lhe pintassem os dentes alvos, Jorge não desistiu. Lentamente, girou mais um pouco. Sentia a lâmpada amolecer entre seus dedos, porém sentia muito mais. De repente, o seu ombro esquerdo explodiu em estrelas doloridas. Assustado, o jovem relanceou o olhar por ele e viu que a sua carne se abria, expondo seus ossos.

Jorge gritava. O seu cavalo forçava a corda que o prendia à árvore em que o seu dono o havia amarrado. Quase sem forças, o jovem usou um último esforço hercúleo para tirar a lâmpada de vez do bocal improvisado. Ela, então, se soltou e atingiu o chão no mesmo momento em que Jorge o fez.

A pequena varanda era iluminada pela luz da lua cheia. No ar, viajava apenas o barulho ressonante da natureza. No entanto, o ouvinte mais atento poderia se ligar no som de duas respirações fracas. Uma vinha do lado de fora, a outra, de dentro da varanda. Uma deu sinais de seu último momento, embalada pela pureza própria aos animais fiéis, a outra, resistia teimosa. Teimoso, Jorge olhava para cima, para a escuridão que tanto custara a ter de volta. A perna direita era uma massa indistinta de carne e ossos triturados. Triturados como o cascalho, triturados como os dentes-de-leão do jardim. Resfolegava, sentindo o gosto metálico do sangue que lhe invadia a garganta. Com os olhos marejados, olhou para cima.

O teto da varanda, que também era feito de madeira, guardava teias de aranha que brilhavam com a luz da lua. Jorge as contou, enquanto se lembrava de sua família. Uma... Seus pais, pessoas simples, mas que sempre amaram seus filhos de forma justa e correta. Duas... Anya, sua querida irmã, sorrindo para ele sempre que zeravam o vídeo-game enquanto comiam salgadinho barato. Três... Carmela, sua noiva, linda em cachos vermelhos, desafiando-o para trilhas arriscadas na praia. 

Quatro...

... e a mente de Jorge já não estava mais na varanda. Lembrava-se da sensação do chão de terra embaixo de si, das unhas sujas e das estrelas, um manto divino acima dele. Lembrava-se de seu cavalo, do amigo que jazia ao seu lado com o pescoço torcido em um ângulo anormal, enquanto que uma poça de sangue tingia de vermelho escuro as pétalas amassadas. Jorge se lembrava do escorregão, da queda... A dor insuportável reverberando em seus ossos expostos...

E quando tudo parecia estar perdido, surgira o caminho até ali. A lâmpada atraente, o ar que insuflava seu peito, antes em pó. Se tudo havia acontecido de verdade, porque ele estava ali? Se tudo aconteceu, por que ele morria novamente? Jorge, então, olhou para os cacos de vidro que jaziam ao redor de si... Enquanto tudo escurecia, ele ouviu alguém lhe chamar pelo nome.

...

- Três reais e quarenta e nove.

...

- Quer sua via?

- Não precisa, obrigada.

- Obrigado e volte sempre.

...

- Cheguei, mãe!

- Anya, que bom. Conseguiu achar a lâmpada?

- Sim, depois te dou o troco...

- Não precisa ver isso agora. Vai lá entregar ela pro seu pai. Ele já tá esperando na varanda.

- Pai!!

- Tô aqui, querida. Vem que já estou com o esquema pronto pra deixar essa lâmpada fixa agora. Não sei como ela quebrou da última vez...

- Deve ter sido um bicho, sei lá... Ou um idiota fazendo gracinha, enquanto a gente tava viajando...

- ... mas agora, não vai quebrar mais! Vem, dá aqui...

...

- Pronto!

- Deu certo, querido?

- Hum.

- Já faz mais de um ano que ele... Vocês realmente acham que isso vai funcionar? Que ele vai voltar por causa dessa lâmpada estúpida?

- Anya!

- Não, querida... Anya, filha, se seu irmão está perdido por aí..! Se ele está perdido..! Vai conseguir achar o caminho de volta para casa. Temos que acreditar!

...
...

- A lâmpada é a única garantia que temos de que seu irmão voltará para casa são e salvo. Vivo..!

- Mas, e a última que já se quebrou... Isso significa que..?

- Anya, por favor...

- Mas, se quebrou! Se quebrou e meu irmão não voltou!

- Por isso que estamos a substituindo... Desde que a varanda permaneça acesa, teremos uma chance de seu irmão voltar.

...

A lenda da varanda iluminada é conhecida, até hoje, por aquelas bandas. É dito que se você passar em frente ao vale, poderá notar uma casa iluminada incrustada na escuridão. E se prestar bem atenção, no silêncio das noites de verão, junto com o coaxar dos sapos, ouvirá a estática da lâmpada sussurrando um único nome.

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