O ovo
"Carlos acordou e fritou um ovo..." A cozinha vazia o incomodava. Pés
descalços, o chão frio corroborava para a sensação de desolação que os
ladrilhos manchados de gordura lhe causavam na espinha. Em seu desespero para
achar o interruptor, seus olhos bateram no relógio digital que descansava no
batente da pia: 03:00. Um barulho vergonhoso reverberou em seu estômago. Ele
estava com fome, o que poderia fazer? Não era dado a lanches noturnos, mas algo
no canto platônico da coruja o convidara a se levantar naquele dia. Rolou pela
cama, desvirou o travesseiro, estralou os dedos dos pés... nada. Bebeu água.
Coçou a cabeça. Nada. Tentou até mesmo contar carneirinhos, mas nada, nada,
nada. O estômago o incomodava, tal qual aquela cozinha maldita, herança de
família, semi-tombada, com seus azulejos brancos de hospital e móveis de
segunda mão. E, agora, lá estava ele com medo dos fantasmas da madrugada,
tateando desesperadamente a parede para encontrar o interruptor. Quando a luz
se fez, a sensação de vazio ainda permanecia nele. A fome tornou-se mais
insistente e passara a cavucar o espacinho molenga que existia no encontro da
cabeça com seu pescoço. Ele, então, decidiu que era a hora. Deu três passos
para frente, à iminência de trombar com a mesa de ferro retorcido. Cinco passos
para o lado, em direção ao relógio que tiquetaqueava acompanhado da foto de
perfil de cantores sertanejos. Mais quatro passos para a frente e lá estava: a
geladeira. Abriu. Mas, que raios de luzinha amarela que só liga quando a porta
da geladeira está aberta? Ou será que ela dormia, escondida, em plena
incandescência, atrás da porta fechada? Pegou o ovo. Com a outra mão,
agachou-se para pegar o azeite. Botou ambos na pia. Bocejou. Se estava cansado?
Deveras. Mas, como poderia estar outra coisa senão em pânico naquele momento?
Sentia o coração marchar dentro do peito. O ar começou a rarear. Precisava
fazer logo aqueles ovos mexidos. Ligou o fogão. As cascas que se partiram não
eram simétricas. O cheiro de gordura o inebriou de pronto. Alguns minutos e a
cozinha não lhe parecia tão assustadora mais. O ovo tinha sabor de recreio e
correria. Mas, o que isso importava? Passou pela pia e jogou o prato vazio.
Amanhã o lavaria junto com a louça do café da manhã. Sem o ovo, a sensação
incômoda retornara a seu peito. Amanhã, não comeria ovos no café da manhã. Quando
chegou ao interruptor, sentiu os pelos da nuca se eriçarem... Antes de cair com
um baque carmim no chão encerado, olhou para a pia. A louça permaneceria suja.
O ar continuaria a rescindir a gemas e claras. ------------ Gregório Duvivier me convidou a criar... Esta é a minha versão de "O ovo". Se quiserem ler as versões que ele criou utilizando as vozes narrativas de autores consagrados, acessem: https://m.folha.uol.com.br/colunas/gregorioduvivier/2013/11/1372847-o-ovo.shtml
1 comentários
Amei!
ResponderExcluirQuanto tempo eu não lia crônicas. Gregorio Duvivier é uma delícia para se ler. Também já fiz uma inspirada por ele, e até que particularmente gostei do que criei.
Blogger | Instagram | Pinterest