Contos terroríficos da pequena rata: número 4

by - outubro 29, 2019

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Sabe o que você sente quando se sente bem? Eu estou me sentindo assim agora. Hoje, eu me sinto bem. Isso não é bom? Não é ótimo, perfeito, maravilhoso? É sim. É. É maravilhoso. Quer saber o motivo de eu esta me sentindo tão bem hoje? 

Hoje comecei o dia com minha rotina matinal. Acordei, virei para o lado, peguei o celular e fui ver o que meus amigos haviam colocado nas redes sociais. Um amigo da época do colégio postou uma foto de uma viagem que ele fez no mês passado para uma ilha do Pacífico. Ele parece feliz. Outra amiga, ela é da faculdade, postou um vídeo de cachorrinhos brincando com uma bola de plástico vermelha. Cachorrinhos são tão fofos, não é? 

Poderia passar horas olhando o celular, mas, então, decidi levantar da cama e tomar um banho. Hoje o dia está quente e meu corpo, tão suado que eu demorei um pouco para conseguir me desvencilhar do lençol. As gotas de água caíam em mim, causando dor, pois elas entravam em algumas feridas, ainda vermelhas, da minha pele. Tudo bem, está tudo bem. Depois do banho, tomei um café duplo com uma fatia de torrada com manteiga, enquanto assistia ao telejornal da manhã no volume cinco. Sempre deixo a televisão no volume cinco para não incomodar os vizinhos.

Vou guardar a manteiga na geladeira e percebo que estão faltando coisas. Não me aborreço. Nunca me aborreço. É só arranjar mais comida. Não levará tempo nenhum. 

Desde que eu me mudei para essa cidade, o meu passatempo preferido é arranjar comida. Eu adoro cozinhar. A cozinha me lembra da minha mãe, lá no interior, seu perfume era sempre misturado às essências dos temperos que ela usava para fazer o feijão. A cozinha me lembra do meu pai também, me lembra da risada musical dele e dos meus irmãos correndo em volta da mesa para distribuir os guardanapos e os talheres. Por isso, quando percebo que não tem comida na geladeira, fico imediatamente contente. Será um dia feliz hoje.

...

Acho que nunca percebi o quanto as escadas do meu prédio são tão íngremes. Acho que é por que nunca subi as escadas depois de arranjar comida. Prefiro pegar o elevador. Sinto o suor descer em minhas costas e ele pinga também do meu nariz, manchando os degraus cinzas sob meus pés. Mas, mesmo cansado, estou feliz. Hoje eu arranjei comida e isso é tão, tão bom.

Engraçado... Os olhos daquela garota eram tão cinzas quantos esses degraus. Aqueles olhos me fizeram ficar perdido por alguns instantes, perdido em sua neblina misteriosa e convidativa. Mas, eu tinha que estar focado, senão, minha geladeira ficaria vazia por mais um dia e isso não seria legal. 

O sorriso dela, sua risada pipocava em meus ouvidos. Eram bolhas de sabão multicoloridas que estouravam em seus lábios e me deixavam desconcertado. Mas, eu tinha que me concentrar hoje. Ela foi tão legal comigo que eu quis a levar para o meu esconderijo secreto, meu lugar favorito no mundo desde que eu era adolescente. Ela estava feliz e eu também.

Mas, de repente, seus olhos cinzentos perderam o brilho e seu sorriso se transformou em um grito de horror. Será que ela não gostou de lá? Será que ela se incomodou por que eu tinha que arranjar comida? Não sei. E já não me importa mais.

Afinal, eu consegui arranjar comida. E estava a levando para a minha casa. O dia tornou-se interminável enquanto eu preparava o jantar, pois é tão complicado cortar aquele tipo de carne, sabe? Os ossos são grandes em algumas partes e é preciso retirar nervos e pêlos que não são comestíveis. Acho que a pior parte de ser cozinheiro é ter que fazer esse pré-preparo, mas são ossos do ofício. Fazer o quê? Não posso me aborrecer.

Minha comida é tão gostosa. Sou elogiado por todos os meus amigos quando eles vem me visitar. Sendo bem sincero, acho que eles não tem muito como reclamar do que eu faço, porque eles não sabem cozinhar nem um ovo, então... Será que eles se sentem intimidados em minha presença? Nunca parei para pensar nisso, mas acho que não. Sou tão legal e quando estou cozinhando, nada, nem ninguém me faz perder a calma.

Depois de algumas horas, termino de limpar a carne. O que sobrou, queimarei depois. Sobraram tão poucas coisas, na verdade, então não terei muito trabalho. Alguns tufos de pêlo castanho, alguns ossos e pequenos dentes que sorriam para mim. Engraçado, mas acho que já vi aquele sorriso antes...

Será? Não sei, mas não importa. Hoje estou feliz, porque poderei cozinhar. Eu adoro cozinhar. Acho que aquele garota dos olhos cinzas ficaria orgulhosa pelo jantar que fiz hoje. Pude aproveitar tão bem tudo o que ela me ofereceu hoje. Durmo com um cheiro doce e enjoativo no ar. E carne fresca na geladeira.

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