Contos terroríficos da pequena rata: número 3
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Apesar de parecer o contrário para um observador desavisado, aquele era um dia rotineiro para a família. A rotina era insensível a tudo, apática e morna, deixando seus servos entediados mesmo sendo um dia de férias para muitos membros da família. Mesmo assim, todos decidiram acordar (com a ajuda de um despertador) e seguir com seus afazeres diários. Dois deles saíram para trabalhar ou resolver outra coisa qualquer, mas os três restantes pensaram que seria interessante desfrutar da maciez entorpecente do sofá naquele dia, que seria um perfeito dia de moscas e suco de limão gelado. Mas, os que ficaram, embora ainda não saibam, lamentariam muito por tomarem essa decisão.
Foi quando um grito agudo e aterrorizante fez-se ouvir, abalando as paredes da residência de dois andares e deixando a paz, outrora entediante, em pedaços. Ana, a irmã do meio de um trio, desce as escadas em disparada para identificar a origem de um som tão atroz aos ouvidos humanos e, ao chegar em seu destino, o horror a toma por completo. Paralisada momentaneamente, a única reação que a garota tem é de chorar e gritar por ajuda. O seu pai, então, deixa de lado os compassos ritmados do teclado do computador e, com raiva pela interrupção repentina, desce fervendo a fim de parar com toda aquela gritaria descomunal. Um passo, dois passos, três o levam até o piso de cimento da garagem que é de onde sai o som de todo aquele espetáculo. Então o horror o rompe também.
Nada na vida havia os preparado para o que encaravam agora. Dona, uma cachorra de dois anos, normalmente fogosa e alegre com seus respeitáveis cinquenta quilos, agora estava com os olhos vermelhos e a boca ensanguentada. Feroz e raivosa, ela devorava a pequena e indefesa Jess, a "chaveirinho" da casa, meiga e dócil com seus ínfimos dois quilos.
Os olhos de Dona eram apenas dois filetes negros e alucinados, enquanto seus dentes afiados rasgavam o pescoço branco de Jess, esmigalhando a carne como uma faca sem fio, as veias jorrando um sangue grosso e quente pelo tapete de malha marrom. O peso de Dona era cada vez maior sobre o corpo inerte da pequena cachorra e nem a força dos três familiares restantes na casa conseguiram a tirar de cima dela e terminar com a ação.
O horror e o choque haviam dominado o lugar por completo. O sangue de Jess pingava no chão junto com as lágrimas de Ana, de sua irmã mais velha e do pai de ambas, tornando-se menos vinho e se transformando em um rosa escuro patético. Em uma última tentativa de parar com aquele espetáculo horroroso, Ana acaricia com firmeza os pelos de Dona para tentar acalmá-la. Dona, então, se rebela e contorce-se violentamente no chão, deixando a pobre Jess, agora sem brilho e nem esperança, morta e inexpressiva como uma mocinha de algum livro de poesia gótica.
Ana dá um sorriso fraco e olha para sua família vitoriosamente. Mas, lembra-se de Jess e corre, em desespero, para tentar restaurar algo que já se esvaíra há muitos minutos. O relógio prateado bate três vezes em cima do aparador. As moléculas de oxigênio no ar que os envolve parecem sumir e a sensação de todos é de uma asfixia paralisante. Quando o medo e o horror são maiores do que a capacidade de absorção do cérebro humano, o cérebro tende a entrar em um estado de apatia plácida e tudo o que acontece no mundo a sua volta é estranho demais para causar qualquer tipo de reação.
Quando Jess, inesperadamente, reagiu, causando uma contente surpresa em todos, ninguém esperava o que viria a seguir. A cachorrinha reagiu de forma brutal, arremessando-se para o pescoço de Ana e tirando-lhe o último sopro de vida, um sopro livre de complicações e cheio de amor, deixando-a morta. Seu corpo inerte bateu contra o tapete de malha, espirrando o sangue da cachorrinha pelas paredes. Em meio a uma poça de sangue do animal, os olhos castanhos de Ana eram dois prismas de diamante. E tudo se tornou terrivelmente, grotescamente, assustadoramente insensível para a razão dos ali presentes.
Jess voltou seus olhos caninos para os demais. Eles estavam vermelhos e desvairados, loucos como os olhos de um tirano sanguinário e perscrutavam os rostos lívidos da família. O ar se tornou gelado e as luzes da casa piscavam incessantemente, enquanto que um som sinistro de uivos rondava a sala aonde todos estavam. O pai de Ana pega a mão de sua outra filha, Célia, e reza para que o pior não aconteça também aos dois. Em uma alternativa questionável, eles se levantam e começam a correr para a porta de entrada que ficava a poucos metros de onde estavam.
Mas, o corredor parecia muito mais comprido do que se lembravam. Os quadros da parede se repetiam em um loop infinito, o tapete se amontoava sob seus pés e a porta era apenas um filete de madeira em uma distância quilométrica. O pai de Célia decidiu, então, parar. E quando fez isso, ele ouviu o som de unhas compridas arranhando o assoalho de madeira que ficava abaixo do tapete. "Tic, tic, tic".
De repente, sua mão ficou mais leve. A neblina do atordoamento que estava sentindo encobria seus pensamentos e ele não conseguia entender os motivos disso. Até que ele se lembrou de Célia e olhou para o lado. Ela não estava mais lá.
Um uivo gutural se ouviu naquele momento. E, então, a última lembrança do pai das meninas foi dos dentes brancos e afiados de Jess na sua frente.
...
Quando chegou em casa, a mãe das meninas estranhou o silêncio. Esperava ao menos ouvir o tilintar de alguma xícara sendo deixada na mesa, ou mesmo, o som chato do teclado do computador de seu marido. Mas, o que ouviu foi um latido gentil a seu lado.
"Olá, Jess. O que houve por aqui?" - ela perguntou ao perceber que a cachorrinha da família estava agitada e indicava a ela que a seguisse. A mãe então seguiu Jess até a lavanderia e percebeu um amontoado estranho e peludo perto da máquina de lavar. Jess havia dado à luz três filhotinhos - um macho e duas fêmeas - naquela tarde. Encantada, a mãe da família foi vê-los mais de pertinho.
"Estranho, acho que conheço esses olhos de algum lugar...", disse. Jess sorriu docemente para ela com os dentes manchados de vermelho.
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* Esse conto foi escrito com a colaboração de uma amiga muito querida chamada Nathalia. Natty, obrigada por quebrar meu bloqueio criativo com a introdução desse conto fantástico. E obrigada por sua amizade também :)
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