Contos Terroríficos da Pequena Rata: número 1

by - outubro 08, 2019

Monstro de Lama Baro, de Black Clover
O dia estava mergulhado em cores opostas no círculo cromático. Era crepúsculo. As ruas da cidade de poucos habitantes no interior de São paulo estavam desertas. Um clichê de filmes de terror, eu diria. Mas, era a mais pura verdade naquele dia, naquela hora. A cidade estava vazia. O som do vento, o único lá fora, era tão escandaloso que chegava a ser inconveniente para os moradores que se escondiam nas casas de pinturas descascadas. 

Todos estavam à espera. Cinco anos haviam se passado desde que “Ele” fizera sua terceira ronda pela cidade. Mais precisamente, cinco anos e dez dias: Parabéns pra você nessa data querida! Espreitavam pelas frestas das janelas amareladas pelo tempo. A luz das televisões era o único indício de que havia gente nas residências, o som no mute, pois os inúmeros pares de olhos castanhos eram invisíveis para quem via da rua. As crianças já estavam na cama há bons minutos. Os adultos, o cheiro de café recém-passado em suas narinas xeretas. 

Era uma espera agoniante. Quando “ele” apareceria pisando forte nos paralelepípedos das vielas e ruelas da cidade? Quando “ele” surgiria, imponente e misterioso, encostando nas portas das casas com suas unhas tamborilando pelas jardineiras?

Era uma espera agoniante. O crepúsculo já terminava, concedendo o ambiente para a noite estrelada que despontava no horizonte. A lua Cheia subia, tal qual um gato prateado caçando ratos na rua.  “Ele” tinha que aparecer antes do fim da Hora Misteriosa, senão, não apareceria mais naquele dia. Os adultos davam-se as mãos em suas casas. O som do vento não era mais o único que se escutava na cidade: palavras baixinhas eram entoadas por lábios ressecados, formando uma música sinistra em semitonadas.

“Ele” tinha que surgir em menos de dois minutos. A capa negro-azulada da Noite, bordada com estrelas mortas e poeira cósmica, já farfalhava em metade do céu da cidadezinha. Os mais velhos tremiam de medo. Porém, o som exótico aumentava de volume, mais e mais, tornando-se quase um cântico de guerra: “Silenciosamente cantarei/por sua alma/Acredito que será/elevado ao puro céu/Por sua alma”.

E, então, repentinamente as luzes dos postes de energia começaram a faiscar. O barulho do vento se tornou mais caótico. Os paralelepípedos tremiam descontrolados pelo peso monumental da figura tão esperada. “Ele” se assemelhava a um balde de lama em movimento - uma massa disforme e gosmenta, que não suportava seu próprio peso e balançava de um lado para outro em busca do equilíbrio.

Os habitantes da cidade deram gritos de alegria abafados por panos de copa e camisetas surradas de dormir. Alguns mais histéricos pegavam seus familiares pelos braços e dançavam, pés sapateando nos assoalhos de madeira barata. “Ele” fazia sua inspeção rotineira pelas ruelas e vielas da cidade.  Tamborilando, arranhando, arrastando, abraçando…

… uma luz. “O que era aquilo?”, perguntavam-se centenários, sexagenários e vinteanistas. “Quem ousaria sair na rua enquanto “Ele” fazia sua inspeção?”, bradavam pais de família. 

A luz vinha de um Santana 84 cor de vinho. O carro estava contornando a esquina da Rua dos Amores com a Avenida Mortífera, em que “Ele” estava parado, atônito. Depois de cruzar a esquina, o corajoso motorista decidiu sair de seu Santana e encará-lo sem nada em mãos para se proteger daquele Ser misterioso e cultuado por tantos na cidadezinha. 

O motorista era, a bem da verdade, uma figura para lá de chamativa: cabelos repartidos em uma risca lateral, calça levantada acima do umbigo por cima de uma camisa lilás de cetim, o cinto era uma pochete e os sapatos de couro (ecológico, é claro) tinham ponteiras de prata. Tinha um palito de dente por entre os dentes reluzentes de tão brancos, um bigode insosso enfeitando seu rosto, grossas sobrancelhas em tom de desafio.

“Ei, cara!”, ele gritou furiosamente. “O que é preciso para enfrentar você? Ahn? Por que não deixa essa cidade em paz? Ahn? Saca qual é a sua? Por que desapareceu com meu irmão? Ele era amado por todos e eu sou desprezível, você tinha que ter me levado. Quer me levar hoje? Ahn?”. “Ele” se virou. Não importava o que aqueles seres diminutos e desprezíveis diziam, pois “Ele” era o dono daquela cidade. O ritmo de seus passos se acelerou, o homem do Santana fincou as ponteiras na pedra a sua frente, esperando pelo que viria…

… então, veio o nada. Um imenso e vazio branco ofuscante, uma vertiginosa queda sem fim. O homem do Santana tentava desesperadamente agarrar algo para que aquela queda sem fim terminasse de uma vez. Em seus ouvidos, zumbiam um barulho de vento tão alto que era quase insuportável, seus olhos não conseguiam se abrir sem que lhe fossem arrancadas lágrimas de desespero…

… então, ele alcançou o fim com um estampido seco. Sentiu terra sob suas mãos que tocavam aquele solo misterioso. Abriu os olhos. Estava em uma sala incolor, sem saída. Acima de sua cabeça, havia apenas o túnel branco por onde caiu durante boas horas. Não tinha comida a vista e nem água…

… então, ele viu. O que era aquilo? Sim, eram ossos humanos. Humanos? Sim, alguns ainda em estado de putrefação. Seu irmão, o rosto carcomido por larvas brancas e gordas, que saíam aos borbotões de seu globo ocular. Humanos? Todos eles, não. Alguns eram de pequenos animais domésticos e…

… então, ele viu. Uma figura horripilante: pedaços de carne apareciam por entre rasgos de sua pele. A pele era translúcida, azulada, arroxeada e salpicada de sangue. Os andrajos que vestiam seu corpo médio tinham cheiro de covas reviradas. Seus olhos eram totalmente dourados e reluziam por entre os cabelos molhados que pingavam em sua testa. A boca daquele ser tinha dentes afiadíssimos e o som que saía de lá era enlouquecedor:  “Silenciosamente cantarei/por sua alma/Acredito que será/elevado ao puro céu/Por sua alma”; “Silenciosamente cantarei/por sua alma/Acredito que será/elevado ao puro céu/Por sua alma”; “Silenciosamente cantarei/por sua alma/Acredito que será/elevado ao puro céu/Por sua alma”. 

No chão, o lilás brilhante manchava-se com tons de vermelho. A cidade poderia suspirar aliviada por outros cinco anos. 

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2 comentários

  1. Muito bom, sua criatividade é impressionante, parabéns e vá p Hollywood 👏👏👏👏

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    1. Bonjour, miss mãe.

      Obrigada pelo comentário, hihi. Quem sabe um dia não consigo ganhar ao menos um concurso de literatura? Vamos tentando.

      Beijos açucarados

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