Caro Anônimo: capítulo I

by - setembro 05, 2020


Esse conto foi baseado no projeto que a Aione, do blog Minha Vida Literária, está produzindo. Por favor, assim que terminar a ler o meu texto, vá até o cantinho dela para a prestigiar. Está bem?
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Eu te amei quando não sabia o que era amor. 

Meus cabelos se encaracolavam na nuca e se enchiam nas pontas, dando a forma de um mini cogumelo para a minha pequena cabeça. Tudo em mim me escondia do mundo: o cabelo volumoso, os óculos de aro verde que me faziam parecer parte de um conjunto da Bossa Nova; o livro (não me lembro qual, mas talvez fosse Romeu e Julieta) que era folheado a cada segundo; a timidez, um muro intransponível que, olhando hoje, nunca me levaria até você.

Mas, e você? Lembro-me que caminhava ao lado de Don Juan com um sorriso despreocupado no rosto. A fama não precisava atingi-lo, muito menos o coração daquelas que dividiam consigo a sala de aula. Aliás, nem mesmo qualquer outro tipo de fama o atingia naquela época: diferente de mim, sempre requerida nos dias de prova, você podia desfrutar da anonimidade de um aluno mediano. Não que isso seja um defeito. Para mim, naquela época, era uma qualidade que eu nunca viria a saborear.

Eu lembro do seu sorriso. Até hoje, esse é o meu tipo de sorriso favorito (confesso que só pensei nisso agora. Acho que os psicólogos estão certos quando dizem que a infância marca muito a nossa construção de mundo): um blending perfeito de graça pueril e marotagem, quase sarcástica. Você sorria assim quando a cavalaria de Juan fazia um comentário qualquer durante a aula. E sorria assim para ela, a que nunca te veria como você queria que o visse naquele tempo. Porém, não posso ser injusta. Você também sorriu assim para mim uma única vez... A vez do bombom.

Como eu disse mais acima, eu te amei quando não sabia o que era amor. E, portanto, não era proficiente na arte de amar. Eu queria que você soubesse o que eu sentia, é claro. Mas, a menina que habita em mim era incapaz de escolher as palavras certas para compor uma frase coerente que te dissesse: eu gosto de você. Não sei se você sabe, mas as palavras são entidades com vida própria e independem de nós, humildes seres humanos, para viverem. Decerto, elas encontraram um jeito de resistirem e ultrapassarem a parede lodosa que me cercava na infância, chamada "timidez". Foram em busca de algo mais forte e corajoso: encontraram as atitudes. Um acordo foi velado no subconsciente... E no dia, eu pude dizer que gostava de você de alguma forma.

Foi o fatídico dia do bombom. Eu tinha um exemplar no bolso do moletom e esperava o momento certo para o colocar em sua carteira. Era para ser um presente anônimo, como a sua presença neste relato. Mas, os amigos são péssimos às vezes. E o anonimato se deflagrou em mil olhares e centenas de risadinhas constrangedoras quando o anjo da mortificação anunciou: "ela tem um presente pra você!" em alto e bom som no meio da sala de aula. Juro, caro anônimo, que eu não poderia ter ultrapassado o vermelho das maçãs de Éden de forma mais eficaz do que naquele dia. Mas, depois do fundo do poço, você só pode olhar para cima... E quando olhei, a luz que emanava da superfície era aquele seu sorriso pronto para me agradecer.

Se eu desconfiava que você sabia que eu te amava, naquele dia, e para o resto dos outros dias nos quais dividimos a sala de aula, era certeza. Ao contrário do que eu esperava, você passou a olhar para mim desde aquele dia: não mais como a menina que poderia te ajudar em momentos de desespero cognitivo, mas como a única que te enxergava diferente no meio das outras trinta e tantas pessoas que habitavam o mesmo colégio do pretérito imperfeito. Você passou a corar a me ver, caro anônimo. Você, a Lua que conseguiu conquistar a Terra, mesmo tão próxima ao Sol.

Mas, eu não dei os motivos pelos quais eu amava você naquela época. Além de seu sorriso, a gentileza que tinha ao lidar com seus amigos e, principalmente, com os estranhos me encantava. Os seus cabelos encaracolados também: mais um ponto para você, por definir padrões intrínsecos às veias e artérias do meu miocárdio que se estenderiam até os dias de hoje. Entretanto, se você me pedir mais motivos pelos quais eu gostava de você, peço perdão por não atender aos seus anseios. Eu era apenas uma criança: eu também amaria você por motivos bem menos subjetivos como se você me trouxesse um chocolate por dia, todos os dias da semana.

Não fique triste, caro anônimo. Você foi realmente importante para mim: o que os sentimentalistas e roteiristas de comédia romântica barata para televisão chamam de "primeiro amor". Você fez meu coração pulsar em um ritmo diferente do que eu estava acostumada; você me fez chorar lágrimas amargas também quando percebi que não corresponderia aos meus sentimentos por você; e me fez cantarolar no banho por uma semana quando deu o ar da graça em minha festa de aniversário de onze anos. Por todos esses momentos, obrigada, caro anônimo.

Mas, sabe, você se cristalizou no tempo. Você se tornou um daqueles personagens de livro que a gente pensa que conhece bem, e que vai amar para sempre apenas porque fez parte de nossa infância, mas que quando os revisitamos, se tornam simples demais as nossas mentalidades adultas. Você se tornou o Mickey na minha extensa biblioteca de memórias e recordações. Por isso, caro anônimo, não se preocupe em me aceitar no Facebook como amiga. Aquela tímida garota dos óculos verdes já não existe mais.

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