One page story challenge: that enables someone to escape
O cervo caramelo olhou para baixo. Suas patas manchadas de branco adquiriram mais uma outra tonalidade, avermelhada. Tentou se mover para banhar sua pata no lago brilhante que avistava à frente. Ele sabia, desde filhote, que as águas dos lagos possuem o poder de curar os mais doentes, os inválidos e aqueles que tiveram seus corações partidos. Sua mãe havia o alertado de que procurasse regiões altas com lagos no centro, porque, assim, ele estaria seguro para sempre. Então, por que sentia que sua pata direita doía com o leve sussurro do Vento Leste?
O cervo tentava se desvencilhar daquilo que o prendia ao lado da Árvore Torta. Ele percebeu que o que se parecia com um cipó, comum na Floresta da Acade, brilhava como as pedras afiadas que ficavam abaixo da cachoeira que findava o seu Lago-Lar. Percebeu também que quanto mais ele entortava a pata, mais aquela coisa estranha o apertava em uma agonia de dor. Fez o que qualquer animal faria naquele momento: cheirou o objeto.
Ah, que cheiro horrível era aquele?
Era cheiro de humano com toda a certeza. Ele poderia, como qualquer animal da Floresta, sentir aquele cheiro a quilômetros de distância, mas as circunstâncias do momento deixaram o seu olfato extremamente prejudicado. Era cheiro de asfalto, nicotina e tecido sintético. Um cheiro que não possuía nenhum equivalente na Natureza: apenas os animais mais preguiçosos o trazia para as clareiras, porque eles chafurdavam os lixos dos humanos à procura da comida que jogavam fora, à luz da Lua Cheia. Preguiçosos, párias. Mas, o cervo sabia que essa realidade seria uma necessidade para todos um dia.
Enquanto humanos invadissem as florestas dessa forma, enquanto eles colocasses dispositivos estranhos para os machucarem e os capturarem - como queria não ter passado por aquele caminho - eles teriam que pensar em soluções para a sobrevivência. Para o cervo, aliás, a solução teria que vir rapidamente. Antes do pôr-do-sol e antes que os passos das botas dos humanos (ele começava a sentir seu estremecimento no chão de terra) se aproximasse mais e mais.
O cervo olhou para cima. O luminoso céu azul de nuvens brancas estava coberto pelas copas das árvores como uma renda verde. Nada poderia ser visto ou ouvido naquele ponto da Floresta... Os animais sabiam o que acontecia ali: o humano passara por ali, assassinara por ali. O humano destruíra por ali. O cervo não morrera ainda. E não tinha a quem recorrer também.
Então, o cervo suplicou aos céus. Uma lágrima prateada rolou por seu focinho dourado. Sua pata direita jazia inerte perto de pequenas margaridas amarelas que brotavam do solo. A força das correntes era demais para seu corpo franzino, pois sempre fora franzino, o mais pequenino da família de cervos do norte da colina.
O cervo fechou os olhos.
E, então, um clarão surgiu repentinamente. Eram mil estrelas que pipocavam aqui e ali, cegando a visão do cervo que já aceitava a qualquer coisa que pudesse lhe ajudar. Da nuvem de poeira cósmica que surgia a sua frente, saiu uma bela moça de negras tranças grossas e pele avermelhada. Ela tinha um sorriso acolhedor como o da sua mamãe. Ela o ajudaria, certo?
A moça o ajudou. Primeiro, ela franziu o nariz para a corrente que o agrilhoava. Decerto ela também não gostava do cheiro que de lá emanava. Ela tinha um machadinho em mãos e muitos panos limpos em sua cesta de vime. Depois de algumas horas - ou dias para o pobre cervo - ela conseguiu finalmente livrá-lo de seu algoz. O seu instinto dizia para ele fugir, mas no seu coração, o cervo sabia que a humana que via a sua frente tinha um cheiro diferente. Ele esperou.
Ela, então, cobriu sua ferida com ervas frescas e enrolou sua pata com os panos da cesta. Ela afagava seus pêlos enquanto fazia todo esse processo mágico. Ao final, ela mostrou seus dentes brancos para ele: o cervo lembrou-se de que os humanos chamavam aquilo de "sorriso".
"Estás livre, criatura da Floresta. Seja corajoso e lembre-se de sua amiga em seu gentil coração".
O cervo sabia que poderia ir embora agora. Ele estava livre.
Olhou mais uma vez para trás, porém, antes. A humana estava se dissolvendo em folhas secas em um redemoinho de luz.
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