a viela

by - outubro 25, 2021


*aviso de gatilho Mesmo na rua escura, ele chamava por ela. Olhos vidrados, o gato laranja que atormentava os ratos da rua jazia no chão. O cheiro da putrefação de seu gordo corpo estacionava no ar gelado. Se antes, os ratos bolorentos o temiam, agora, eles faziam a festa em sua ferida mais exposta. Fora morto dois dias antes com veneno, a sua sétima vida levada ao sabor de latas de atum e serenatas ao luar, sempre tranquilo, sempre arisco, sempre antenado. Mas, agora, ele era apenas uma massa disforme em meio ao caos da viela escura. Ao passar pelo gato, Antônio cobriu o nariz com um gesto de desaprovação. Suas roupas largas denunciavam a vida difícil que levava: a vida de um escritor em crise. Os óculos de aro redondo escondiam, porém, grande parte da beleza que lhe era natural. Olhos amendoados herdados do pai, mas com a diferença de os de Antônio, vermelhos e irritadiços, não conseguirem focar em um objeto por um tempo maior do que cinco segundos. Os cabelos lisos seriam inesperadamente sedosos se, contudo, Antônio não os mantivesse sempre cortados à régua, máquina 2. E os suspensórios, guardiões de calças de algodão cru tingidas de carmim, eram o destaque óbvio do conjunto visual que ele formava. Escritor, poeta, Antônio tinha um perfil de artista comum à boemia paulistana. Seguro de si, mesmo que a boca tremulasse pelo efeito das bebedeiras noturnas, seus olhos desfocados mantinham o ar de inflamada superioridade quando conversava com seus companheiros. De espírito leve e jovem, Antônio tinha o seu pequeno séquito de seguidores, todos aspirantes às Letras, assim como ele, porém, com bem menos talento. Porque se, para alguns, Antônio não passava de um burguês padrão de vida fácil e Europa nas férias; era inegável, todavia, que Antônio era talentoso. Seus textos tinham aquela vírgula incomum de sagacidade gentil, natural de mentes únicas e que ainda possuíam o frescor da juventude em suas almas. Assim, Antônio virou figura recorrente em saraus e concursos de escrita organizados por sua universidade. Mas, nada que ele fizesse poderia anular a sina que ele carregava: Antônio era um escritor. Suas roupas cheiravam a caneta-tinteiro. Sua dor se conspurcava apenas pelas palavras que a sua mente disparava em um datilografar ensandecido. E sua vida girava ao redor de histórias inacabadas, personagens traiçoeiros e cenários vazios de espírito. Até que, um dia, Antônio amou pela primeira vez. Apaixonou-se por um par de olhos verdes que tinha um excelente gosto musical. Entre bailes, cafés, parques e bibliotecas, seu namoro durou nove meses inteiros. O olhar de Antônio se tornara ainda mais desfocado, conectando-se apenas com os olhos verdes que escondiam em si a preciosidade do universo. Mas, então, os olhos verdes tornaram-se constantemente inundados. E a pequena boca que os acompanhava, pálida e ressecada, só ganhava tons de carmim quando o sangue que saía de seus pulmões lhe jorrava. E, então, vítreos, como os olhos do gato que Antônio olhara com asco anteriormente, se tornaram os olhos de sua amada. A rua estava escura, mais um dia sem Lua na capital. Mas, Antônio não se importava com a ausência de algo que já não existia mais em sua vida. Todo o potencial de seu futuro brilhante se esvaíra junto com o sangue que manchava os lenços bordados de sua amada. Antônio, antes um escritor, agora já não percebia se algum título ainda tinha forças para definir o resto de vida que ainda, teimosamente, carregava no peito. Sua mão direita tremia. Nela, uma caneta-tinteiro. Em sua ponta afiada, borbulhava um resto de tinta preta que Antônio usara para escrever seu romance de despedida. Agora, ele seria um autor de verdade: uma obra póstuma no currículo. Antônio sorriu, procurando um fiapo de estrela que pudesse haver se perdido no céu de chumbo. Era o capítulo final, ele sabia. Afundo a caneta em seu pescoço, abafando quaisquer últimas palavras que pudesse pronunciar. Seu corpo bateu com um baque surdo no chão de paralelepípedos da viela. Os olhos nunca mais poderiam aprender a focar. Naquela rua escura, Antônio e o gato se tornaram irmãos na tragédia. E a chuva purificava os sinais de solidão.

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