flocos de neve, aconchego
fonte: Amino |
o seu coração congelado não batia no ritmo de um relógio. não. suas batidas eram suaves como as ondas quebrando na orla da praia, felizes pelo encontro com sua amante e com a possibilidade de beijá-la sem nenhum impedimento. o seu coração batia assim: medroso com a felicidade que se anunciava, pois não queria criar expectativas sobre sua inexorável finitude. era um coração congelado portanto.
em meio ao caos de amor em que ele vivia, já não podia mais discernir felicidade real com a imaginária. todos elas formavam uma mesma massa bolorenta que não permitia desassociação. por isso, ele repetia, mentalmente, o mantra que criara para si mesmo na época de colégio: viver um dia de cada vez. e ainda outro, que anunciava: o mais importante da vida é comer, dormir e trabalhar - se todas essas etapas forem cumpridas no dia, esse será um dia feliz.
assim, ele passava seus dias. cercado por livros de capas brilhantes, de autores brilhantes - e outros, nem tão solares assim - ele sorria com a simples preparação de um café. a borra, que já exalava aromas fantásticos sem nenhuma água para aquecê-la, era posta em um coador de papel, após uma modesta rega deste. ele, então, entornava a água fumegante. era a criação em seu mais puro sentido. adoçava? só se o cliente pedia...
mas, que cliente aparecia por ali? dois ou três no máximo. por semana. e ele ocupava sua mente com a produção de um blog muito parecido com este, mas que permitia uma liberdade sentimental muito maior.
porém, nada disso importava. não importava o quão aconchegante era o espaço em que estava, com sua atmosfera de comédia romântica natalina, o cheiro de livro e café se misturando no ar. não importava que, quando ele voltasse para casa, encontrasse uma família barulhenta e amorosa, pronta para enchê-lo de tapas ou de beijos (ninguém nunca apurou qual era o mais carinhoso entre os dois). não importava que todos na cidade o conhecesse e o tratasse como um deles.
porque ele, de fato, não era.
ele era o filho do lobo cinza que morava nas montanhas da floresta. ele tinha a sobrancelha prateada dele sobre os olhos que o permitia enxergar a verdadeira natureza de quem o cercava. ele brincava com besouros-rinoceronte e conhecia cada reentrância das montanhas como as linhas em M da sua palma da mão.
ele era um espírito livre, selvagem.
mas, como um espírito desses poderia ter seu coração congelado? como, se ele acordava com o sol todas as manhãs e inalava sua energia revigorante todas as tardes? ninguém sabe ao todo... alguns dizem que seu coração se congelou quando o lobo que o guiava sumiu. outros, quando aquela que iluminava seus olhos como centelhas da clareira de outono, foi embora sem aceitar o seu besouro-rinoceronte. entretanto, os mais perspicazes dizem que foi quando ele olhou pela primeira vez para aqueles que o acolheram em um dia de chuva: com medo de que tivessem o mesmo destino do lobo, ele reteve o seu amor no mais fundo quarto do miocárdio. e, com tanto espaços vazios de uma só vez, seu coração não acostumado aos invernos rigorosos do vilarejo, entregou-se ao gelo.
mas, será que para sempre?
talvez não. porque aquela que o olhava como todos os outros, mas para quem ele olhava de forma diferente desde seu primeiro encontro, tornou a vê-lo diferente após uma longuíssima viagem a capital. com suas malas abarrotadas de insegurança, e sem seu celular, ela voltara com a esperança de recomeçar. ele a viu do alto da colina enevada. e percebeu que seu sorriso brilhava de forma distinta para ele, só para ele, quando as luzes voltaram a pisca-piscar em amarelo na meia-noite dos reencontros oficiais.
ela o amava afinal?
ela disse que sim em um sussurro. ele não conseguiu dizer nada.
mas, as montanhas não deixariam seu filho desamparado em momentos tão cruciais quanto esse. insuflou seu coração de vida com uma brisa leve de inverno a embaraçar seus cabelos. permitiu que ele criasse expectativas pela breve duração de minutos. ele retribuiu (ou confessou?) o amor que ela sentia por aquele que deu aconchego e calor ao seu coração.
e, então, o coração dele queimou. o tiquetaquear ritmado que se podia ouvir saindo dele naquele momento era retumbante.
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* esse conto foi inspirado no dorama "When the Weather is Fine" da JTBC, disponível, no Brasil, pelo site Viki.
2 comentários
Eu adoraria colocar aqui um emoji com lágrimas, pois essa é a emoção que se apossou de minha pessoa enquanto lia esse texto - que está muito bonito aliás!
ResponderExcluirPor algum motivo, durante a leitura eu me lembrei de uma animação que vi ano passado chamada "Crianças Lobo" (esse acho que ainda tem na Netflix), que eu imaginava ser algo leve mas que tinha tantas camadas emocionais que fiquei toda chorosa com o filme ah-haha, eu tenho que rir para não ficar tão emotiva agora. Só não tenho certeza se toparia pegar esse dorama para ver, eu geralmente tenho uma preguiça maior com doramas.
Beijos, Snow!
Bonjour, miss Snow. Ça va?
ExcluirEu fico muito contente por você ter gostado do meu singelo - e aconchegante - conto de inverno. Espero que você aprecie toda a seção de contos por aqui também! Eu já assisti ao anime que você mencionou e é, realmente, de partir o coração. Adoro como as produções audiovisuais do oriente nos trazem uma perspectiva completamente diferente e lições que calam fundo à alma, diferente das muitas produções ocidentais (na minha opinião).
É esse um dos motivos pelos quais eu amo tanto doramas. E este que deu origem ao conto é um dos mais sensíveis, verdadeiros e aconchegantes que eu já assisti em minha breve jornada de dorameira, hihi. Dá uma chance para ele, pois tenho certeza de que irá amar (com o coração leve e livre de preconceitos). Beijos açucarados e au revoir